segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Tributo à Tia Nai!



Tributo à Tia Nai!






As cartas iam e vinham dando notícias e falando das saudades. Sempre na esperança do encontro em breve, mas, quase sempre, sem saber exatamente o dia e o horário. A distância não era tão grande. De Pau D’arco (zona rural onde morávamos no município de Candeal/Ba) à Araci/Ba, uma distância de menos de 100 km. Mas, as condições materiais não facilitavam. Assim, a gente demorava um pouco para se ver. Dependia de um carro cedido pela prefeitura, de um amigo que tivesse carro ou que o povo de Araci viesse na camionete do tio Zé de Glorinha, cheia de gente, para nos visitar. As chegadas eram dias de intensa alegria. Inesperadas. Impossível esquecer.

Quando íamos de Pau D’arco para Araci, era sempre uma aventura: não consigo entender como cabiam tantas crianças e meus pais naquele carro que, quase sempre quebrava na estrada. Encostava em uma sombra até fazer o carro funcionar novamente. Nisso, alguém que oferecia um copo de tubaína para as crianças ou à sombra de uma árvore, esperávamos brincando.

 Minha mãe, com o coração ardendo de saudades de seus pais, irmãs, irmãos e sobrinhos/as, e cheia de expectativas, parecia resplandecer o rosto de alegria. Usava o vestido mais novo e bonito que tinha. Cabelos negros, grossos e pesados penteados, sorria. Nós, oito filhos/as explodíamos também de alegria. E a viagem seguia.

Chegando no município de Araci/Ba, ainda um pedaço de chão para chegar naquela casinha na roça. Impossível lembrar disso e não sentir o cheiro da melancia em fatias dentro da gamela de madeira que vovô João pegava na roça e partia para nós que, com a primarada, sentados no chão em torno da gamela, nos lambuzávamos deliciando cada fatia. Tudo era muita festa. Colocar uns aos outros no carrinho de mão e descer ribanceira abaixo, disparados, com gritos e festa e fugindo dos bodes que corriam atrás de nós. Montar o jumento com um e outro na garupa e cair pelo rabo do jegue. Passear na camionete do tio Zé nas estradas de chão, desviando dos ramos de mato que raspavam nossas cabeças, sentindo o cheiro da caatinga. A volta para casa fazia a gente reviver tudo aquilo com lembranças inesquecíveis.

Mas quero falar da “Tia Nai”, que hoje fez sua viagem para outra dimensão. Mainha sempre nos contava casos dela permeados de alegria. Era a tia do riso, do bom humor, da festa, da alegria. Como a gente se amava! Fazia as caretinhas e nos dengava. Impossível uma criança não amar a tia Nai. Aqueles gritinhos, aquele jeito feliz.

Mas a visita também se dava de Araci para Pau D’arco e quase sempre era em um domingo inesperado e normal. Minha mãe, de tanta saudade, costumava olhar sempre para o caminho. Parece que o coração intuía. Naquele tempo não tinha telefone para avisar. Bem cedinho, de repente, mainha olhava para estrada e via uma camionete azul cheia de gente apontar. Coração pulava e dizia: “É o carro de Zé de Glorinha!” Todo mundo corria para o terreiro. Da camionete o povo começava a gritar. A gente corria, organizava rapidamente a casa, colocava um “crote” na mesa e a festa começava. Abraços e festa. Catava a galinha no terreiro e o almoço, feito em mutirão, começava cheirar no fogão à lenha. Quando era tempo de laranja, pegava a faquinha e íamos chupar laranja debaixo dos pés. Tudo que se tinha de melhor em casa era partilhado na festa daquele encontro. O rosto de mainha resplandecia e aquelas irmãs mostravam para nós, sem muitas palavras, o tanto que se amavam e nos ensinavam a mais profunda lição de amor.

Tia Nai, sempre se destacava. Ia direto no rádio de pilha que ficava na sala, movia as estações até achar uma música, quase sempre na rádio “Morena Bela” de Serrinha, e começava dançar. Tudo se contagiava e a gente vivia, nestes encontros, a celebração da vida, da partilha e do amor. Tia Nai não morreu! Pessoas como ela não morrem. Ela se multiplicou em nós, sobrinhas/os, netas/os e bisnetos. Nossa imensa gratidão por sua existência em nossas vidas. Somos testemunhas de suas lutas, suas buscas, seus sonhos. Lutou até o fim. Que sua partida fortaleça a nossa luta na defesa da saúde pública e de qualidade. Que todas as pessoas deste país possam ter, de forma igual e justa, acesso aos seus direitos fundamentais. E que se abram caminhos para a imunidade contra os vírus que matam. Que os seres humanos compreendam que estamos interligados e precisamos nos salvar e nos curarmos mutuamente.

Gratidão, tia Nai! Gratidão tias, tios, Egídio, seu companheiro, primas e primos que, com muito amor, cuidaram deram o tempo todo. Ela vive em nós. Seguiremos construindo, cada dia, sua resistência, sua luta e sua alegria. Para nós que acreditamos que a morte não é o fim, Tia Nai seguirá presente. Sempre!

Belo Horizonte, 23 de novembro de 2020

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro

Filha da Zete