10 ANOS DE EXERCÍCIO DA ADVOCACIA POPULAR
10 anos aprendendo a arte de advogar na contramão do Sistema
Capitalista
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro[1]
Este ano de 2019, desde que se
iniciou, me colocou em atitude de reflexão, de avaliação da vida e de
retrospectivas. É que em 2019 completo 22 anos morando fora da Bahia sendo que
97% deste tempo morei em terras mineiras. Mas, também, completam-se 10 anos de exercício
da advocacia popular, o que chamo neste texto de "a arte de advogar na
contramão do sistema capitalista", cujos valores são medidos pela busca
desenfreada de lucro e poder para a parte minoritária da população mundial,
considerada os mais ricos do mundo, em detrimento de muitas injustiças socioambientais,
animais, etc., contra a grande maioria da população. A dignidade humana e
planetária jamais foi preocupação deste sistema que mata, cotidianamente muitas
vidas.
Dentro de minhas reflexões sobre
os meus 10 anos de advocacia popular em terras mineiras, gostaria de
compartilhar as duas primeiras causas que assumi como advogada, assessorando
organizações populares de defesa de direitos e movimentos populares de luta por
moradia. Considero importante esta partilha, sobretudo por estarmos vivendo
mais uma fase deste crime/tragédia da Vale em Brumadinho, iniciado em 2015 com
o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, mas que há muitos anos já vinha
dando sinais de que o pior aconteceria e também de muitas maneiras, o projeto
da mineração como um todo já vinha sendo incansavelmente denunciado por vozes
que são perseguidas, abafadas, silenciadas, excluídas, etc.
Com a Carteira da OAB na mão,
logo que fui aprovada na primeira e segunda fase da prova da Ordem em 2009, a
Associação Portal do Caraça, de Catas Altas, MG., me procurou pedindo apoio,
pois, como voz no deserto, em reunião do CODEMA, votou contra a exploração minerária
na região e o então prefeito da cidade determinou a saída da referida entidade do
Conselho, em franco ato de abuso de autoridade.
Impetramos um Mandado de
Segurança contra o ato abusivo do prefeito e o então juízo da Comarca de Santa
Bárbara, extingui a inicial, sem a mínima paciência para me ouvir quando
busquei despachar em seu gabinete e conversar sobre o assunto. Da decisão deste
Juízo de primeiro grau, apelei para o Tribunal e fomos acompanhando atentamente
o processo. Os desembargadores votaram
acolhendo as razões recursais, confirmando nossos argumentos de que a
destituição da ONG Portal do Caraça do CODEMA violou o devido processo legal
administrativo, os princípios do contraditório, da ampla defesa, da democracia,
da razoabilidade e da proporcionalidade indispensáveis na Administração Pública
e determinou a reforma da sentença para que a ONG fosse reinserida no CODEMA. Uma
decisão judicial que não é muito comum de ser vista.
Sabe-se o quanto as pessoas e
entidades que têm posicionamento contrários à mineração e a sua ampliação são
perseguidas e clamam como "vozes" no deserto nesses conselhos. Faz-se
urgente ampliar as formas de participação diretas e não apenas as
institucionalizadas.
Meu segundo processo judicial, como
advogada popular, foi o da Ocupação Comunidade Dandara, em Belo Horizonte,
também Minas Gerais. Sobre esta experiência reservei um capítulo de minha
dissertação de mestrado, pela importância que ela tem para minha vida pessoal e
profissional. Com Dandara, que no dia 9 de abril de 2019 completará 10 anos de
existência, aprendi muitas lições: enquanto o povo ocupava a terra, eu, com
ele, ocupava também minha existência, minha coragem e minha liberdade. Com
aquele povo que se erguia e erguia suas casas e seu modo de vida, eu erguia
processos coletivos e internos de amor, de ternura e de muita resistência. Não
fomos despejados, embora despejos acontecem mesmo quando o trator não vem, mas,
sobretudo, os processos judiciais de Dandara atestam que para ganhar ou perder
na justiça nem sempre depende do juiz. Depende muito mais da nossa capacidade
de lutar de mãos dadas. Nestes 10 anos de advocacia popular, esta lição serve
para a vida. Se alguém, em quem você confia muito, soltar sua mão na luta,
procure outras mãos para segurar. Segure firme, sobretudo na mão de quem se
dispõe lutar com você e nas mãos de quem sempre teve a luta como companheira de
estrada.
A seguir, um resumo do acórdão do
Mandado de Segurança sobre o qual mencionei acima: meu primeiro processo como
advogada popular.
Numeração
Única:
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Relator do
Acórdão:
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Des.(a)
ALBERGARIA COSTA
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Data do
Julgamento:
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07/04/2011
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Data da
Publicação:
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28/09/2011
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EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE
SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DA INICIAL. FATOS DEVIDAMENTE COMPROVADOS. DIREITO
LÍQUIDO E CERTO. EXAME DA ILEGALIDADE E ABUSIVIDADE DO ATO NA INICIAL.
MATÉRIA DE MÉRITO. O direito líquido e certo é um conceito processual e
refere-se à necessidade de comprovação, de plano, dos fatos narrados na
inicial da ação mandamental. Considerando que os fatos alegados na inicial
estão devidamente comprovados, a inicial deve ser deferida. O exame da
legalidade do ato apontado como coator deve ser enfrentado no mérito do
writ.Preliminar
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 3ª
CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a
Presidência do Desembargador KILDARE CARVALHO , incorporando neste o
relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas
taquigráficas, à unanimidade de votos, EM DAR PROVIMENTO.
Belo Horizonte, 07 de abril de
2011.
Assistiu ao julgamento, pelo
apelante, a Dra. Maria do Rosário de Oliveira Carneiro.
A SRª. DESª. ALBERGARIA COSTA:
VOTO
Trata-se de recurso de apelação
interposto por Sociedade Amigos do Patrimônio Histórico Cultural e Ecológico
de Catas Altas contra a sentença de fls.82/85, que indeferiu a petição
inicial do mandado de segurança impetrado contra ato do Prefeito Municipal de
Catas Altas.
Em suas razões recursais, a
apelante sustentou que a destituição da ONG Portal do Caraça do CODEMA violou
o devido processo legal administrativo, os princípios do contraditório, da
ampla defesa, da democracia, da razoabilidade e da proporcionalidade
indispensáveis na Administração Pública.
Afirmou não ser possível o
indeferimento da inicial pelos argumentos da sentença, já que não corresponde
às hipóteses do art.12 da Lei n.º 12.016/2009.
Pediu a reforma da sentença.
Ouvida, a Procuradoria-Geral de
Justiça opinou pelo provimento do recurso.
É o relatório.
Conhecido o recurso, uma vez
presentes os pressupostos de admissibilidade.
Cinge-se o recurso em analisar a
presença de uma das condições específicas da ação mandamental: o direito
líquido e certo.
A certeza e liquidez referem-se aos
fatos narrados pelo impetrante, que devem ser comprovados de plano, por meio
de prova pré-constituída, uma vez que a ação mandamental não comporta dilação
probatória.
Veja-se a lição de Celso Agrícola
Barbi:
"Como se vê, o conceito de
direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende ao modo de ser
de um direito subjetivo no processo: a circunstância de um determinado
direito subjetivo realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e
certeza: esta só lhe é atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser
provados de forma incontestável, certa no processo." (destaques apostos).
E ainda:
"A especial estrutura do
processo do mandado de segurança exige a apresentação imediata das provas
pelo requerente e não admite essa forma processual quando haja dificuldade na
apuração dos fatos. Tudo isso leva à conclusão que é necessária ao juiz a
convicção quanto aos fatos, fundada em prova direta".
Na espécie, a apelante invocou seu
direito líquido e certo à permanência como membro do CODEMA - Conselho
Municipal de Defesa e Conservação do Meio Ambiente, pois teria sido excluído
pela autoridade coatora sem a prévia instalação de processo administrativo.
E os fatos que fundamentam a ação
foram devidamente comprovados pela documentação que instrui a inicial, qual
seja: cópia do Decreto n.º 1.161/2010 que excluiu a impetrante da composição
do CODEMA (fls.10); cópia do Estatuto da Organização da Sociedade Civil
(fls.21/25), comprovante de inscrição no CNPJ (fls.36).
Portanto, considerando que os fatos
alegados na inicial estão devidamente comprovados, a inicial deve ser deferida.
O exame da legalidade do ato apontado como coator deve ser enfrentado no
mérito do writ.
Isso posto, DOU PROVIMENTO ao
recurso para REFORMAR a sentença de primeiro grau e deferir a inicial da ação
mandamental, cabendo ao Juízo de primeiro grau o exame acerca do cabimento da
liminar.
Com ternura e resistência,
Belo Horizonte, 10 de fevereiro de
2019.
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[1] Advogada
Popular, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares
(RENAP). Mestranda em Novos Direitos, Novos Sujeitos pela Universidade Federal
de Ouro Preto - UFOP. Contato: mrosariodeoliveira @gmail.com
Obrigada Rosário, pela partilha e por sua disposição na luta sem perder a ternura. Um abraço fraterno. Renata Siviero
ResponderExcluirQue beleza de texto, Rosário, sinal da grande advogada popular que você é. Você e muito craque em competência teórica, em articulação de lutas libertárias e com um compromisso inabalável com a classe trabalhadora e camponesa superexplorada. Continue brilhando exalando luz revolucionária. Abraço terno. Gilvander
ResponderExcluirParabéns, Rosário.
ResponderExcluirParabéns, Rosário! Pela sensibilidade e compromisso com a luta.
ResponderExcluirLindo!!!! Me sinto grata por dividir essa vida com você, por ter seu sangue correndo em minhas veias, minha querida! Te amo de forma que não cabe em mim. Obrigada por significar tanto. Você me inspira! ❤❤❤
ResponderExcluirBacana demais, Rosário! Obrigado pela amizade, partilha e compromisso!!!
ResponderExcluirO Bom Deus multiplique em vc a capacidade de exercer a advocacia popular com profetismo. E que anime outros... Precisamos...
ResponderExcluirParabéns, Rosario! Obrigada pela luta, coragem e determinação por contribuir com sabedoria e conhecimento para as camadas populares. Muito feliz!
ResponderExcluirQuerida Rosário, sua persistência e coragem nos inspiram e nos dão a certeza que não estamos sozinhas.
ResponderExcluirRosário, sua trajetória, seu trabalho e luta são exemplo e força para nós. Parabéns pelos 10 anos!
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