As cartas iam e vinham
dando notícias e falando das saudades. Sempre na esperança do encontro em
breve, mas, quase sempre, sem saber exatamente o dia e o horário. A distância
não era tão grande. De Pau D’arco (zona rural onde morávamos no município de
Candeal/Ba) à Araci/Ba, uma distância de menos de 100 km. Mas, as condições materiais
não facilitavam. Assim, a gente demorava um pouco para se ver. Dependia de um
carro cedido pela prefeitura, de um amigo que tivesse carro ou que o povo de
Araci viesse na camionete do tio Zé de Glorinha, cheia de gente, para nos
visitar. As chegadas eram dias de intensa alegria. Inesperadas. Impossível
esquecer.
Quando íamos de Pau D’arco
para Araci, era sempre uma aventura: não consigo entender como cabiam tantas
crianças e meus pais naquele carro que, quase sempre quebrava na estrada.
Encostava em uma sombra até fazer o carro funcionar novamente. Nisso, alguém
que oferecia um copo de tubaína para as crianças ou à sombra de uma árvore,
esperávamos brincando.
Minha mãe, com o coração ardendo de saudades
de seus pais, irmãs, irmãos e sobrinhos/as, e cheia de expectativas, parecia resplandecer
o rosto de alegria. Usava o vestido mais novo e bonito que tinha. Cabelos negros,
grossos e pesados penteados, sorria. Nós, oito filhos/as explodíamos também de
alegria. E a viagem seguia.
Chegando no município de
Araci/Ba, ainda um pedaço de chão para chegar naquela casinha na roça.
Impossível lembrar disso e não sentir o cheiro da melancia em fatias dentro da
gamela de madeira que vovô João pegava na roça e partia para nós que, com a
primarada, sentados no chão em torno da gamela, nos lambuzávamos deliciando
cada fatia. Tudo era muita festa. Colocar uns aos outros no carrinho de mão e
descer ribanceira abaixo, disparados, com gritos e festa e fugindo dos bodes que corriam atrás de nós. Montar o jumento com um e outro na garupa e cair pelo
rabo do jegue. Passear na camionete do tio Zé nas estradas de chão, desviando
dos ramos de mato que raspavam nossas cabeças, sentindo o cheiro da caatinga. A
volta para casa fazia a gente reviver tudo aquilo com lembranças inesquecíveis.
Mas quero falar da “Tia
Nai”, que hoje fez sua viagem para outra dimensão. Mainha sempre nos contava
casos dela permeados de alegria. Era a tia do riso, do bom humor, da festa, da
alegria. Como a gente se amava! Fazia as caretinhas e nos dengava. Impossível uma
criança não amar a tia Nai. Aqueles gritinhos, aquele jeito feliz.
Mas a visita também se
dava de Araci para Pau D’arco e quase sempre era em um domingo inesperado e
normal. Minha mãe, de tanta saudade, costumava olhar sempre para o caminho.
Parece que o coração intuía. Naquele tempo não tinha telefone para avisar. Bem cedinho,
de repente, mainha olhava para estrada e via uma camionete azul cheia de gente
apontar. Coração pulava e dizia: “É o carro de Zé de Glorinha!” Todo mundo
corria para o terreiro. Da camionete o povo começava a gritar. A gente corria,
organizava rapidamente a casa, colocava um “crote” na mesa e a festa começava. Abraços
e festa. Catava a galinha no terreiro e o almoço, feito em mutirão, começava
cheirar no fogão à lenha. Quando era tempo de laranja, pegava a faquinha e
íamos chupar laranja debaixo dos pés. Tudo que se tinha de melhor em casa era
partilhado na festa daquele encontro. O rosto de mainha resplandecia e aquelas
irmãs mostravam para nós, sem muitas palavras, o tanto que se amavam e nos ensinavam
a mais profunda lição de amor.
Tia Nai, sempre se destacava.
Ia direto no rádio de pilha que ficava na sala, movia as estações até achar uma
música, quase sempre na rádio “Morena Bela” de Serrinha, e começava dançar.
Tudo se contagiava e a gente vivia, nestes encontros, a celebração da vida, da
partilha e do amor. Tia Nai não morreu! Pessoas como ela não morrem. Ela se
multiplicou em nós, sobrinhas/os, netas/os e bisnetos. Nossa imensa gratidão
por sua existência em nossas vidas. Somos testemunhas de suas lutas, suas
buscas, seus sonhos. Lutou até o fim. Que sua partida fortaleça a nossa luta na
defesa da saúde pública e de qualidade. Que todas as pessoas deste país possam
ter, de forma igual e justa, acesso aos seus direitos fundamentais. E que se
abram caminhos para a imunidade contra os vírus que matam. Que os seres humanos
compreendam que estamos interligados e precisamos nos salvar e nos curarmos
mutuamente.
Gratidão, tia Nai!
Gratidão tias, tios, Egídio, seu companheiro, primas e primos que, com muito
amor, cuidaram deram o tempo todo. Ela vive em nós. Seguiremos construindo,
cada dia, sua resistência, sua luta e sua alegria. Para nós que acreditamos que
a morte não é o fim, Tia Nai seguirá presente. Sempre!
Belo
Horizonte, 23 de novembro de 2020
Maria
do Rosário de Oliveira Carneiro
Filha
da Zete