Maria do Rosário Carneiro
Outra
vez é quaresma! Tempo no qual as igrejas cristãs fazem memória do deserto
vivido por Jesus de Nazaré por quarenta dias, antes de iniciar sua vida
pública, passando por diversas tentações. Passada essa experiência, Jesus reafirmou sua
opção na defesa da vida de tal modo que, como consequência de seu ensinamento e
de suas ações, foi condenado pelos poderes dominantes da religião, da economia
e da política à pena de morte mais cruel de seu tempo, isto é, a morte na cruz.
Contudo, antes da crucifixão, julgado e condenado por estes poderes que, atuando conjuntamente,
atendiam ao comando do império romano que, não muito diferente dos tempos
globalizados atuais, pretendia-se universal e temia qualquer tipo de ameaça.
Como, assim, um homem do interior, de uma pequena
cidade rural, de uma colônia quase invisível no mapa como era Nazaré da Galileia,
filho de um marceneiro e de uma mulher pobre e camponesa, questionar os poderes
do grande império? Como, assim, esse camponês jovem organizar trabalhadores/as,
pescadores/as e questionar a obrigação de pagar tributos ao templo para
serem abençoados por Deus e para recuperarem a saúde? Como, assim, este homem acolher
mulheres, prostitutas, leprosos, ateus, cobradores de impostos, etc.? Como,
assim, promover o diálogo com todas as crenças e modos de vida e ainda testemunhar
que Deus, invocado sob tantos nomes, é o Deus do diálogo e do amor infinito?
É o
que a 5ª Campanha da Fraternidade Ecumênica, em 2021, propõe: o diálogo como
modo de amar e o amor como ética da vida. E não é de se assustar as
resistências que logo apareceram de alguns grupos contrários ao tema e à metodologia
da Campanha da Fraternidade. O diálogo libertador incomoda. Incomodou no tempo
de Jesus também. Mas que tipo de diálogo a Campanha da Fraternidade Ecumênica propõe?
Iniciativa
assumida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desde 1963, a
Campanha da Fraternidade é um dos projetos importantes da Igreja Católica e das
Igrejas cristãs que compõem Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
(CONIC), por isso, ecumênica.
Trabalha, a cada ano, temas de fundamental importância para avançar na
construção da justiça social e no projeto de sociedade que tenha como primazia
a dignidade humana e planetária, a defesa dos direitos humanos e dos direitos
da natureza, bem como a construção da Ecologia Integral, o que também podemos
chamar de Sociedade do Bem-viver e Conviver.
Campanha
é um conjunto de esforços e ações diversas, coordenadas e articuladas, visando
alcançar um objetivo. Constantemente tomamos conhecimento de uma série de
campanhas que são realizadas por distintos grupos e organizações, com as mais
diversas intenções. Nesse caso, dizemos de uma campanha que vem sendo
organizada pela Igreja, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) e pelo CONIC, que tem como objetivo a Fraternidade.
Se
buscarmos o significado de fraternidade nos mais diversos tipos de dicionários,
remete-nos ao “laço de parentesco entre irmãos, irmandade”. Embora pareça algo
simples de se viver, em tempos de tanto individualismo e intolerâncias,
torna-se algo extremamente difícil e necessário. Ser fraterno, colocar-se como
irmãs e irmãos uns dos/as outros/as é algo que se faz urgente para o bem da
humanidade e isso não se faz sem amor, respeito e diálogo.
Utilizar-se
da tática de fazer uma campanha para estimular a fraternidade entre as pessoas
e das pessoas para com a natureza é uma ação sábia da Igreja que se repete
todos os anos durante o período quaresmal, desde o ano de 1963. Mas, a Campanha
da Fraternidade, quer estar para além de uma campanha. Quer se transformar em
gestos concretos de compromisso com a fraternidade e não há fraternidade sem
ações que promovam solidariedade, justiça social e a paz verdadeira, que é
fruto da justiça.
Importante
levar em consideração o ano em que a Campanha da Fraternidade foi assumida por
toda Igreja do Brasil: 1963/64. Neste ano, o Brasil vivia tempos muito difíceis
e brutais. da ditadura militar-civil-empresarial. A democracia havia sido
arrancada das mãos do povo e o poder que governava não apenas retirou as
liberdades, mas torturava, matava e fazia centenas pessoas desaparecerem,
sobretudo se essas pessoas demonstravam compromisso com a fraternidade e com a
justiça social.
Dizemos
que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil em 1964
porque não o foi assim desde seu embrião. Importante destacar que ela nasce no
coração da Cáritas Brasileira, no nordeste do país. Em 1961, três padres
responsáveis pela Cáritas no Rio Grande do Norte organizaram uma Campanha para
arrecadar fundos para as atividades da Igreja local e, no ano seguinte, durante
a quaresma, essa campanha recebeu o nome de “Campanha da Fraternidade”. Isto
ocorreu na cidade de Natal. Diante da exitosa experiência, no ano seguinte,
1963, dezesseis dioceses do Nordeste também realizaram a Campanha da
Fraternidade.
Diante
disso, a CNBB, imbuída pelo espírito do Concílio Vaticano II, assumiu a Campanha da
Fraternidade como projeto da Igreja no Brasil, à luz das Diretrizes Gerais de
sua Ação Pastoral Evangelizadora. Lembrar o marco temporal em que nasce a
Campanha da Fraternidade e seu contexto político, econômico e social é
importante para falar desta Campanha. Cinquenta e seis anos depois, o País
segue vivendo tempos difíceis, em que a fraternidade é sufocada pelos males do
modelo econômico capitalista que prega o individualismo entre as pessoas, faz
crescer a fome, o número de pessoas sem moradia digna, sem-terra, sem trabalho,
vítimas da injustiça social, agrária, urbana e ambiental. Um olhar sobre os
temas da Campanha da Fraternidade ao longo destes cinquenta e seis anos leva a
perceber a diversidade de gritos que se fizeram ecoar e que seguem ecoando em
nosso chão.
Na
década de 1970, a Campanha da Fraternidade trouxe temas como participação,
reconciliação, promoção humana, serviço e vocação, a libertação por meio do
amor, reconstrução, repartir o pão, comunidade, família, mundo do trabalho e
migrações, perpassaram os temas da campanha. Já na década de 1980, os temas
giraram em torno do mundo das migrações, saúde, educação, violência, vida para
todos, a fome, luta pela terra, o menor, povo negro e comunicação. Com a virada
do milênio, a dignidade humana aparece como tema, seguida da temática das
drogas, povos indígenas, pessoas idosas, a questão da água, a promoção da paz,
pessoas com deficiência, a Amazônia, defesa da vida, segurança pública,
economia, a vida no planeta, saúde, juventude, tráfico humano, igreja e
sociedade, cuidado com a casa comum, biomas brasileiros, superação da violência
e políticas públicas. No ano de 2020 A Campanha da Fraternidade abordou o tema
“Fraternidade e Vida: dom e compromisso,” inspirado no Evangelho de Lucas,
“Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,25-37). Neste ano de 2021, “Fraternidade
e Diálogo: compromisso de amor” é o Tema da Campanha da Fraternidade Ecumênica,
com Lema Inspirado na carta aos Efésios 2,14a “Cristo é nossa Paz: do que era
dividido, fez-se unidade”.
Costumo
escrever algo neste tempo de Campanha da Fraternidade e, quase sempre
encontrando no tema profunda relação com as temáticas atuais e presentes em
minha atuação como advogada popular. Já escrevi sobre as pessoas em situação de
rua, os/as catadores/as de materiais recicláveis, as pessoas sem teto e na luta
por moradia, pessoas atingidas pela mineração e o direito à assessoria técnica
para a reparação integral. Este ano, sinto-me interpelada a escrever mais
algumas linhas sobre o tema. Talvez retomando coisas já ditas e outras novas e
este texto tem do que disse ano passado e em outros anos atrás. “Repetir,
repetir. Até ficar diferente”, disse o poeta Manoel de Barros. É preciso
repetir até que um dia transformemos esta sociedade marcada por tantas
injustiças sociais. Transformar, sobretudo, este modelo político-econômico para
o qual, quanto menos diálogo do povo com o povo, melhor as condições de lucro e
poder.
Como
aponta o projeto de sociedade pautado na Ecologia Integral e na Sociedade do
Bem-Viver e Conviver, tudo está interligado nesta “casa comum.” A Pandemia da Covid-19
demonstrou isso de modo muito concreto. Esta pandemia é resultado, sem dúvidas,
dos males provocados por este sistema capitalista de morte. Para esse sistema,
vale o lucro e não a vida. Sobretudo a vida de quem não detém poder econômico. Mas,
a pandemia também mostra que, se o mal, praticado por alguns pode atingir a
todos, o bem e o amor, por meio do diálogo e de ações concretas de defesa da
vida, também podem ou podem ainda mais, atingir a todos e todas e a natureza,
inclusive. Recorro aqui ao ensinamento
da Capitã Pedrina de Lourdes Santos (mãe de Axé) em umas das tantas lives
denunciando as violências da mineração em Minas Gerais quando convidava a
seguirmos “levando juntos a bandeira do respeito, do amor e de nossa liberdade”
e ainda, falando da relação ser humano-natureza, interrogava: “ou você não
entendeu que está tudo vive?”.
Dentre
os objetivos da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021, ao conclamar para o
diálogo como caminho para a paz, está denunciar as diferentes violências
praticadas e legitimadas indevidamente em nome de Jesus. Nunca se viu tanto uso
do nome de Deus para legitimar políticas de morte, de racismo, machismo,
homofóbicas, criminalização dos pobres e de seus movimentos e organizações de
luta. Aliás, não se pode dizer que nunca se viu. Já se viu muito na história da
humanidade. Não é possível esquecer que a retórica do teocentrismo, do saber e
da fé universal queimaram muitas mulheres chamando-as de bruxas, matou muitos
seres humanos, simplesmente porque eram diferentes dos que aqui chegaram para
invadir, na forma de acreditar, de ser de viver e se relacionar com a natureza
e de amar. No Brasil, isso é uma prática desde a colonização. Como diferente do
europeu colonizador que aqui chegou, invadindo e encobrindo (não descobrindo
como pregado), como afirma Henrique Dussel, não houve diálogo. Exterminou-se
e encobriu. E tudo isso em nome do lucro e de Deus.
Os
demais objetivos da Campanha apontam para um tempo novo. O que o povo
organizado, que sempre resistiu às opressões e injustiças, vêm tentando
construir: o compromisso com as causas que defendem a casa comum; a
contribuição para superar as desigualdades; animar o engajamento e ações
concretas de amor ao próximo; promover a cultura do amor como forma de superar
a cultura do ódio; fortalecer a convivência e a comunicação inter-religiosa e
eu acrescentaria com todas as formas de crer e não crer, independente de optar
ou não por alguma religião e compartilhar experiências concretas de diálogo e
convívio fraterno.
Dialogar
supõe respeito e respeito supõe viver o amor para além de um sentimento, mas o
amor como ética da vida e como exercício cotidiano de vida. O diferente de mim
não é uma ameaça. É algo que pode me fazer melhor como ser humano. E em tempos
de mundo virtual e de pandemia, com o necessário isolamento social, o diálogo
se torna mais desafiador e necessário. É preciso exercitar. Como me sinto mais
humana depois que passei a conviver com pessoas de religiões de matriz ancestral
africana, pessoas que são ateias e/ou que ainda não se convenceram da
existência de Deus; amigas e amigos homossexuais nas suas mais distintas formas
de concepção de si mesmas. Pessoas que seguiram toda sua vida tentando se
entender enquanto seres humanos neste mundo. Vivendo tantas formas de angústia e
de sofrimento por não serem escutadas e entendida, por causa da falta de
diálogo. Pessoas que preferiram interromper a vida porque já não mais
suportavam a violência da falta de respeito, de acolhimento e de diálogo neste
mundo cheio de moral perversa e de injustiças. O diálogo com o diferente me
humaniza.
A
Campanha da Fraternidade Ecumênica convoca para o diálogo como caminho para a
paz. E este é um dos caminhos. Os opressores investem no diálogo entre si e
constroem muros e modos de matar. Precisamos construir e fortalecer o diálogo
como ética da vida e como tática para a grande estratégia de construção da
sociedade que queremos viver.
É preciso reunir as bandeiras e, juntos e
juntas, marcharmos na grande romaria da vida rumo à reconstrução da casa comum,
da dignidade humana e planetária, pois, dignidade é direito. Isso não pode ser
uma tarefa para amanhã. Precisa-se começar ou continuar ainda hoje.
É
preciso sentarmos todos e todas na mesma mesa e partilharmos a vida, a fé, o pão,
as alegrias e as dores. Mas, essa mesa, a da partilha e do diálogo, precisa ser
nas calçadas e ruas das cidades onde moram nossos irmãs e irmãs de rua; nas
celas superlotadas dos presídios; nas casas de prostituição onde muitas
mulheres trabalham para ganhar o pão; nas carroças dos/as carroceiros/as
expulsos das cidades e de seu ganha-pão; nos galpões de reciclagem onde pessoas
esperam pelo que descartamos e por políticas públicas para sobreviver; nas
pequenas propriedades rurais onde os camponeses e camponesas, todos os dias,
são empurrados e expulsos/as pelo agronegócio; nos rios mortos pela lama
maldita do capital e da mineração e nos lares das pessoas por ela atingidas;
nos terreiros; nas casas das milhares de famílias brasileiras que foram
contaminadas pela pandemia da Covid-19 e/ou que sequer puderam velar seus
parentes e são vítimas do descaso com a saúde pública. A dignidade humana e
planetária precisa ser respeitada.
Enfim,
essa mesa do diálogo e da partilha precisa ser preparada em muitos lugares e
situações. Como no caso do Nazareno da pequena Galileia, a vida terá a última
palavra e não será tarde para aprendermos que diálogo é caminho para a
fraternidade, a paz e o amor como ética e modo concreto de viver a vida. Que
não seja apenas mais uma Campanha da Fraternidade. Caso ainda não consiga
entender, respeite! O respeito também é diálogo. A violência não! E o Deus de
Jesus escolheu o caminho do diálogo. Fez-se um ser humano e o humano também é
diferente de Deus. Que a Fraternidade seja um modo cotidiano de vivermos a vida
respeitando e dialogando com as diferenças, construindo, assim, a dignidade
humana e planetária.
Belo
Horizonte, 21 de fevereiro de 2021.
Com Ternura e Resistência.
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Presbiteriana Unida
do Brasil, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do
Brasil, Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia (Siríaca), Aliança de Batistas do
Brasil, Igreja Betesda e Centro ecumênico de serviços de Educação Popular.
DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. A origem do “mito da
modernidade”. Petrópolis:
Vozes, 1993.