Introdução
A
campanha da Fraternidade, iniciativa assumida pela Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) desde 1964, neste ano de 2020 tem como tema
“Fraternidade e Vida: dom e compromisso” e lema, inspirado no Evangelho de
Lucas, “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10, 25-37). Objetiva
“Conscientizar, à luz da Palavra de Deus, para o sentido da vida como dom e compromisso,
que se traduz em relação de mútuo cuidado entre as pessoas, na família, na
comunidade, na sociedade e no planeta, nossa Casa Comum”.
O
presente texto se propõe apresentar uma breve reflexão, inspirada na Campanha
da Fraternidade/2020, voltando o olhar para as inúmeras vítimas (pessoas,
natureza e biodiversidade) da mineração no Brasil, especificamente a partir das
pessoas atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão em Mariana, MG., crime
ocorrido em novembro de 2015. É também uma reflexão a partir da experiência
vivida com essas pessoas, na luta cotidiana pela reparação integral dos
direitos e testemunhando o sofrimento delas. Diante do convite da Igreja do
Brasil para ver, julgar e agir a partir do tema da Campanha da Fraternidade em
questão, não poderia deixar de trazer esta realidade por entender que é um dos
grandes clamores oriundos do povo, das águas, da terra e de toda biodiversidade
atingida pela mineração.
1.
Sobre a
campanha da Fraternidade
Campanha é um conjunto de esforços e ações
diversas, coordenadas e articuladas visando alcançar um objetivo.
Constantemente tomamos conhecimento de uma série de campanhas que são
realizadas por distintos grupos e organizações, com as mais diversas intenções.
Nesse caso, dizemos de uma campanha que vem sendo organizada pela Igreja, por
meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que tem como objetivo
a Fraternidade.
Se buscarmos o significado de
fraternidade nos mais diversos tipos de dicionários, remete-nos ao “laço de
parentesco entre irmãos, irmandade”. Embora pareça algo simples de se viver, em
tempos de tantas desumanidades, torna-se algo extremamente difícil e necessário.
Ser fraterno, colocar-se como irmãs e irmãos uns dos outros é algo que se faz
urgente para a humanidade. É preciso buscar inspiração, por exemplo, em
Francisco de Assis,
este ser humano que em seu tempo compreendeu-se irmão não apenas dos demais
seres humanos, mas de toda natureza, chamando de irmão, o sol, a lua, a terra,
o ar, etc., uma espécie de anúncio para a importância de uma concepção
biocêntrica e não mais antropocêntrica da vida. São Francisco já parecia querer
dizer da importância de reconhecer a natureza, os animais e toda biodiversidade
como sujeitos de direitos.
Trazemos Francisco de Assis, mas,
muitos são os exemplos de seres humanos que “passaram” e que permanecem entre
nós, vivendo e sendo fraternidade, ou melhor, tendo a fraternidade como projeto
de vida. Destacamos, nesse sentido, como brilhantemente lembra o cartaz da
Campanha da Fraternidade desse ano, irmã Dulce, conhecida como “Irmã Dulce dos
Pobres”. Mulher nordestina que foi reconhecida como santa pelo modo de viver a
vida se fazendo fraterna, irmã das pessoas empobrecidas. O Vaticano lhe
concedeu este título em 2019, mas o povo baiano já a reconhecia santa a muito
tempo. O povo das periferias de Salvador já não tinha dúvidas quanto a isso.
Ela é uma inspiração de vida em fraternidade, de ser fraternidade.
Utilizar-se da ação estratégica de
fazer uma campanha para estimular a fraternidade entre as pessoas e das pessoas
para com a natureza é uma ação sábia da Igreja que se repete todos os anos
durante o período quaresmal, desde o ano de 1964. Mas, a Campanha da
Fraternidade, quer estar para além de uma campanha. Quer se transformar em
gestos concretos de compromisso com a fraternidade e não há fraternidade sem
ações que promovam solidariedade, justiça social e a paz, que é fruto da
justiça.
Importe levar em consideração o ano em
que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil: 1964.
Neste ano, o Brasil vivia tempos difíceis. Estava instaurada a ditadura
militar-civil-empresarial. A democracia havia sido arrancada das mãos do povo e
o poder que governava o país não apenas retirou as liberdades, mas torturava,
matava e fazia muitas pessoas desaparecerem, sobretudo se essas pessoas
demonstravam compromisso com a fraternidade e com a justiça social.
Dizemos que a Campanha da Fraternidade
foi assumida por toda Igreja do Brasil em 1964 porque não o foi assim desde seu
embrião. Importante destacar que ela nasce no coração da Cáritas Brasileira, no
nordeste do país. Em 1961, três padres responsáveis pela Cáritas no Rio Grande
do Norte organizaram uma Campanha para arrecadar fundos para as atividades da
Igreja local e, no ano seguinte, durante a quaresma, essa campanha recebeu o
nome de “Campanha da Fraternidade”. Isto ocorreu na cidade de Natal. Diante da
exitosa experiência, no ano seguinte, 1963, dezesseis dioceses do Nordeste
também realizaram a Campanha da Fraternidade.
Diante disso, a CNBB, imbuída pelo
espírito do Concílio Vaticano II,
assumiu a Campanha da Fraternidade como projeto da Igreja no Brasil, à luz das
Diretrizes Gerais de sua Ação Pastoral Evangelizadora. Lembrar o marco temporal
em que nasce a Campanha da Fraternidade e seu contexto político, econômico e
social é importante para falar desta Campanha. Cinquenta e seis anos depois, o
País segue vivendo tempos difíceis, em que a fraternidade é sufocada pelos
males do modelo econômico capitalista que prega o individualismo entre as
pessoas, faz crescer a fome, o número de pessoas sem moradia digna, sem-terra,
sem trabalho, vítimas das injustiças sociais. Um olhar sobre os temas da Campanha
da Fraternidade ao longo destes cinquenta e seis anos leva a perceber a
diversidades de gritos que se fizeram ecoar e que seguem ecoando em nosso chão,
como demonstrado a seguir.
2.
Temas da
Campanha da Fraternidade na linha do tempo
Como informado acima, a Campanha da
Fraternidade foi assumida como projeto da CNBB no território nacional em 1964
e, naquele ano, teve como tema “Igreja em Renovação”. Como lema, “lembre-se: você
também é Igreja”. Essa campanha tinha
como objetivo demonstrar que todas as pessoas podem ser Igreja. Para além da
igreja física, do clero e dos/as religiosos/as consagrados/as, existe a Igreja
Povo e esta igreja também deve se comprometer com os objetivos do Evangelho no
amor ao próximo e com a causa da justiça, motivo pelo qual Jesus foi preso e
condenado à morte. Importante lembrar que era um tempo de efervescência das
comunidades eclesiais de base (CEBs), inspiradas na Teologia da Libertação e
impulsionadas pelo concílio Vaticano II.
Em 1965 a Campanha da Fraternidade
teve como tema “Paróquia em Renovação” e lema “Faça da sua paróquia uma
comunidade de fé”. É na paróquia que a vida acontece, onde as pessoas se
encontram com mais facilidade e se constrói a Igreja Povo. Em 1966 o tema da
Campanha foi “Fraternidade” e o lema “Somos responsáveis uns pelos outros”. Um
convite ao cuidado e à responsabilidade uns para com os outros, sobretudo para
com as pessoas empobrecidas e com a construção da comunidade de fé e de
compromisso com a justiça.
A “corresponsabilidade” foi tema da
Campanha de 1967 e o chamado “Somos todos irmãos, somos todos iguais” foi seu
lema. No ano seguinte (1968) o tema foi “Doação” e o lema “Crer com as mãos”,
um forte chamado ao compromisso com a causa do Evangelho e com a justiça. Em 1969, com o tema “Descoberta” e o lema
“Para o outro, o próximo é você”, o convite se dava para o compromisso com a
promoção humana e o amor ao próximo.
A década de 1970, trouxe temas como participação,
reconciliação, promoção humana, serviço e vocação, a libertação por meio do
amor, reconstrução, repartir o pão, comunidade, família, mundo do trabalho e
migrações, perpassaram os temas da campanha, como demonstrado a seguir:
·
1970 Tema: Participar. Lema: ser cristão é participar;
·
1971 Tema: Reconciliação. Lema: Reconciliar
·
1972 Tema: Serviço e Vocação. Lema: Descubra a felicidade de servir;
·
1973 Tema: Fraternidade e libertação. Lema: O egoísmo escraviza, o
amor liberta;
·
1974 Tema: Reconstruir a casa Lema: Onde está teu irmão?
·
1975 Tema: Fraternidade é repartir. Lema: Repartir o Pão;
·
1976 Tema: Fraternidade e Comunidade. Lema: Caminhar juntos;
·
1977 Tema: Fraternidade na
Família. Lema: Comece em sua casa;
·
1978 Tema: Fraternidade no mundo do trabalho. Lema: Trabalho e
Justiça para
Todos;
·
1979 Tema: Por um mundo mais humano. Lema: Preserve o que é de
todos.
Na década de
1980, os temas giraram em torno do mundo das migrações, saúde,
educação,
violência, vida para todos, a fome, luta pela terra, o menor, povo negro e
comunicação, como pode ser visto adiante:
·
1980 Tema:
Fraternidade no mundo das Migrações, Exigência da Eucaristia. Lema:
Para onde
vais?
·
1981 Tema: Saúde
e Fraternidade. Lema: Saúde para todos;
·
1982 Tema:
Educação e Fraternidade. Lema: A verdade vos libertará;
·
1983 Tema:
Fraternidade e Violência. Lema: Fraternidade, Sim! Violência, Não!
·
1984 Tema:
Fraternidade e Vida. Lema: Para que todos tenham vida;
·
1985 Tema:
Fraternidade e Fome. Lema: Pão para quem tem fome;
·
1986 Tema:
Fraternidade e Terra;
·
1987 Tema:
Fraternidade e o Menor. Lema: Quem acolhe o menor, a mim acolhe;
·
1988 Tema:
Fraternidade e o Negro. Lema: Ouvi o clamor deste povo;
·
1989 Tema:
Fraternidade e a Comunicação. Lema: Comunicação para a verdade e a
paz.
Na década de 1990 foram temáticas como
a mulher, o mundo do trabalho, juventude,
moradia, família, política, os
encarcerados, educação e os desempregados. Vejamos:
·
1990 Tema:
Fraternidade e a Mulher. Lema: Mulher e Homem: Imagem de Deus;
·
1991 Tema: A
Fraternidade e o Mundo do Trabalho. Lema: Solidários na dignidade
do trabalho;
·
1992 Tema:
Campanha da Fraternidade. Lema: Juventude Caminho Aberto;
·
1993 Tema: Campanha
da Fraternidade. Lema: Onde Moras?
·
1994 Tema:
Campanha da Fraternidade. Lema: A Família, como vai?
·
1995 Tema:
Campanha da Fraternidade. Lema: Eras Tu, Senhor?
·
1996 Tema:
Fraternidade e Política. Lema: Justiça e Paz se abraçarão;
·
1997 Tema: A Fraternidade
e os Encarcerados. Lema: Cristo liberta de todas as
prisões;
·
1998 Tema:
Fraternidade e Educação. Lema: A Serviço da Vida e da Esperança;
·
1999 Tema: A
Fraternidade e os Desempregados. Lema: Sem trabalho… Por quê?
Com a virada do milênio, a dignidade
humana aparece como tema, seguida da temática das drogas, povos indígenas,
pessoas idosas, a questão da água, a promoção da paz, pessoas com deficiência,
a Amazônia, defesa da vida, segurança pública, economia, a vida no planeta,
saúde, juventude, tráfico humano, igreja e sociedade, cuidado com a casa comum,
biomas brasileiros, superação da violência e políticas públicas, como
demonstrado a seguir:
·
2000 Tema: Novo
Milênio sem Exclusões. Lema: Dignidade Humana e Paz;
·
2001 Tema:
Campanha da Fraternidade. Lema: Vida, Sim! Drogas, Não!
·
2002 Tema:
Fraternidade e povos indígenas. Lema: Por uma terra sem males;
·
2003 Tema:
Fraternidade e pessoas idosas. Lema: Vida, dignidade e esperança;
·
2004 Tema:
Fraternidade e água. Lema: Água, fonte
de vida;
·
2005 – Ecumênica
Tema: Campanha da Fraternidade Ecumênica. Lema: Felizes os
que promovem a paz;
·
2006 Tema:
Fraternidade e Pessoas com Deficiências. Lema: Levanta-te, vem para o
meio!
·
2007 Tema:
Fraternidade e Amazônia Lema: Vida e missão neste chão;
·
2008 Tema:
Fraternidade e Defesa da Vida Humana. Lema: Escolhe, pois, a vida;
·
2009 Tema:
Fraternidade e Segurança Pública. Lema: A paz é fruto da justiça;
·
2010 Tema:
Economia e Vida. Lema: Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro;
·
2011 Tema:
Fraternidade e a Vida no Planeta. Lema: A criação geme em dores de
parto;
·
2012 Tema:
Fraternidade e saúde pública Lema: Que a saúde se difunda sobre a
terra;
·
2013 Tema:
Fraternidade e Juventude. Lema: Eis-me aqui, envia-me!;
·
2014 Tema: Fraternidade e Tráfico Humano. Lema:
É para a liberdade que Cristo
nos libertou;
·
2015 Tema:
Fraternidade: Igreja e sociedade. Lema: Eu vim para servir;
·
2016 Tema: Casa
comum, nossa responsabilidade. Lema: Quero ver o direito brotar
como fonte e
correr a justiça qual riacho que não seca;
·
2017 Tema:
Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida. Lema: Cultivar e
guardar a
criação;
·
2018 Tema:
Fraternidade e superação da violência. Lema: Vós sois todos irmãos;
·
2019 Tema:
Fraternidade e Políticas Públicas. Lema: Serás libertado pelo Direito e
pela
Justiça
Chama
atenção para o fato de que ao longo destes mais de cinquenta anos de Campanha
da Fraternidade todas as temáticas parecem igualmente presentes e urgentes na
sociedade brasileira atual. Os temas se complementam e a dignidade humana e
planetária está como pano de fundo em todos eles.
O
tema da mineração, embora presente desde a invasão europeia no território
brasileiro em 1500, ainda não apareceu diretamente nas campanhas da
fraternidade, embora a mineração esteja de algum modo presente nas temáticas que
pediram atenção para o cuidado com a natureza, cuidado com as águas e com a
casa comum. Importante considerar que os primeiros atingidos pela exploração
minerária no Brasil foram os povos indígenas e o povo negro.
Hoje,
o país vive o drama das barragens que se rompem matando centenas de pessoas,
como a Barragem de Fundão em Mariana e a do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Ademais,
centenas de pessoas vivem em municípios e regiões ameaçados pela possibilidade
de rompimentos a qualquer momento. Essas pessoas estão à mercê do que as
próprias empresas, autoras destes crimes lhes oferecem. O cuidado, por meio de
uma assessoria técnica e acompanhamento humanizado tem sido garantido apenas
depois de muita luta e, para alguns casos, só depois que o crime acontece.
O
trabalho preventivo nunca foi garantido. Faz-se necessário pensar uma grande
campanha e reforçar a luta em torno desta temática e das pessoas atingidas pela
mineração.
3.
O tema da
campanha da Fraternidade em 2020
O tema da Campanha da Fraternidade
neste ano de 2020, embora perpasse todos os demais dos anos anteriores, neste
tempo em que vive o Brasil, tem um significado especial. “Fraternidade e vida:
dom e compromisso,” com o lema: “viu, sentiu compaixão e cuidou dele” torna-se
um grito forte para todas as pessoas que firmam sua fé no seguimento de Jesus
de Nazaré.
Vivemos tempos em que a lógica é a do
avesso ao amor ao próximo. Tempos em que se vê as realidades de dores e
passa-se por diante para não se aproximar e muito menos cuidar. Todos os dias
se atesta no Brasil os discursos de ódio e as ações de violências e de
retiradas de direitos dos grupos e coletivos historicamente injustiçados, como
os povos indígenas, sem-teto, sem-terra, pessoas em situação de rua, catadores
de materiais recicláveis, pequenos trabalhadores rurais, ribeirinhos,
homossexuais e um grande número de pessoas atingidas pela mineração. Mas, não
apenas as pessoas. Rios, água, terra e a biodiversidade são assassinados.
A gestão política e econômica nesta
sociedade capitalista não tem nada de “samaritana”. Os esforços tem sido
colocados para aumentar as dores de quem se encontra caído à beira do caminho.
Mas, o convite da Campanha da Fraternidade, urgente, em alto e bom som, é para “ver,
descer e cuidar”. Isto precisa ser feito na sua radicalidade, como o fez Jesus
de Nazaré. Ele, não apenas narrou a parábola do Samaritano. Esta parábola era o
seu projeto de vida. Contudo, em tempos de muitos barulhos, de fake news,
de mídias digitais, de muito brilho, de correrias, exercitar o ver, o sentir
compaixão e o cuidar, é um exercício necessário e imprescindível para quem é
cristão e/ou para quem é humano.
A inspiração do lema da campanha da
fraternidade, com fundamento no texto de Lucas 10, 25-37, pede três atitudes
fundamentais: ver, sentir compaixão e cuidar. Isto remete ao texto de Êxodo, na
narrativa da libertação do povo da escravidão, quando afirma que Javé “viu a
aflição do seu povo que se encontrava escravo no Egito, ouviu seus clamores e desceu
para libertá-los” (Ex 3, 7-8).
Para viver o Evangelho é preciso ver,
ouvir, sentir compaixão, descer e cuidar. Isso significa que não basta saber
das injustiças. Não basta sentir a dor do próximo, pois, é preciso
movimentar-se para a mudança desse quadro anti-cristão. Sem essas atitudes
pode-se estar seguindo qualquer outra pessoa, menos Jesus de Nazaré. E para ver
é preciso descer, pisar os pés nos lugares onde se encontram os “caídos”, os
que estão à beira do caminho, as vítimas das injustiças sociais e da ausência
de políticas públicas, os empobrecidos de nossa sociedade.
Mas, além de descer, de sentir
compaixão, de ouvir, é preciso cuidar. Contudo, para cuidar, é preciso anunciar
e denunciar, é preciso profetizar. É preciso correr riscos.
O cuidar pode incomodar, provocar
ameaças e até morte. Mas é preciso entender as causas das feridas, o porquê das
feridas. É preciso falar do lugar social de quem é ferido. No caso de Jesus, o
cuidar do outro lhe levou à prisão e à morte. Fizeram dele um preso político e
o condenaram.
Quando se trata de injustiça social, o
cuidado deve buscar a reparação das injustiças. Isso passa por emancipação,
luta coletiva e organização popular. É preciso dar o pão para matar a fome, mas
é preciso garantir também teto, terra, saúde, educação, renda, cultura,
dignidade humana, etc. É preciso empreender lutas por direitos.
No caso das pessoas e da natureza no
Brasil, vítimas dos crimes socioambientais, como as pessoas atingidas por
rompimento de Barragens, como em Mariana, Brumadinho e outros municípios
ameaçados, o cuidar exige luta por reparação integral para as pessoas e para a
natureza e toda biodiversidade, mas também exige a responsabilização de quem cometeu os crimes,
repensar o modelo econômico e o projeto de mineração que há séculos mata vidas
e natureza no país. Em Minas Gerais e no Brasil, este é um clamor sem precedentes
na história da humanidade, um grito que precisa ser ouvido e cuidado. É preciso
caminhar junto com estas pessoas em suas lutas cotidianas contra as
consequências continuados desses crimes.
4.
Rompimento
da Barragem de Fundão em 2015
“Repetir,
repetir, até ficar diferente,” já profetizou o poeta brasileiro, Manoel de
Barros. Passados quae cinco anos do crime/desastre socioambiental cometido
pelas empresas mineradoras, Samarco (Vale-BHP Billiton) no município de Mariana
em novembro de 2015, considerado à época, sem precedente no Brasil e no mundo,
o que já não pode mais ser assim afirmado, pois, se repetiu em Brumadinho, em
janeiro de 2019, o povo ainda espera pela reparação integral.
O novo crime/desastre (ou sua
continuidade) que fez de Mariana um precedente, aconteceu em proporção ainda
maior, pelo número de vítimas (mais de 250 pessoas, animais, rios e toda a
vegetação do entorno). Por isso, é preciso repetir, fazer memória, e,
sobretudo, lutar para que seja assegurado às famílias atingidas a reparação
integral de seus direitos. Em tempos de Campanha da Fraternidade, é preciso
trazer isto à baila.
Um ano após o rompimento da barragem
de Fundão, a Cáritas Regional Minas Gerais, que atuava no território de Mariana
com trabalho de assistência emergencial às pessoas atingidas, em parceria com a
Cáritas Arquidiocesana de Mariana, assumiu a assessoria técnica dos/as
atingidos/as. Isto se deu em decorrência da Ação Civil Pública nº
0400.16.003473-4, de autoria do Ministério Público Estadual local.
Desde então, a Assessoria Técnica
executada pela Cáritas atua no território de Mariana, em diversas áreas,
construindo com os/as atingidos/as, o trabalho de defesa de direitos, visando a
reparação justa e integral, em cooperação com o Ministério Público, mas, também,
buscando fortalecer o trabalho em rede e a parceria com as organizações e
instituições de defesa dos/as atingidos. Para isso, atua com uma equipe
multi/transdisciplinar.
O projeto de Promoção da Assessoria
Técnica vem se consolidando no decorrer destes mais de três anos e se afirmando
em sua identidade, com princípios e metodologia construídos e executado com e
para os/as atingido/as, o que supõe o respeito ao seu tempo e a seus processos.
A grande maioria dessas pessoas tiveram suas vidas modificadas e, para
participar dos processos com a assessoria técnica, precisa redistribuir o tempo
entre trabalho, família, atividades pessoais e uma série de reuniões
convocadas, cotidianamente, também pelas empresas na pessoa da Fundação Renova.
Repetir, fazer memória, manter a luta
na defesa da reparação justa e integral das pessoas atingidas e na defesa dos
direitos da natureza, se faz urgente e necessário e é o que as famílias das
comunidades do município de Mariana, atingidas, têm feito desde o dia 05 de novembro
de 2015.
Passados mais de quatro anos do
crime/desastre socioambiental e mais de 03 anos de experiência da Cáritas
Brasileira no território, uma das conclusões a que se pode chegar é a de que
“para um crime socioambiental continuado, a assessoria técnica também tem que
ser continuada”, pois os efeitos do crime/desastre prolongam-se no tempo e nos
espaços. E mais: esta assessoria tem que ser eleita pelos/as atingidos/as e tem
que ser de sua estrita confiança.
O conceito de atingido, com o passar
do tempo, tende a se alargar e os efeitos negativos em decorrência do
crime/desastre, na vida e nos direitos das pessoas, tendem a aumentar, fazendo
com que um número maior de pessoas passe a se reconhecer atingidas e pleitear
os seus direitos.
Recentemente inúmeros estudos
apontaram para um alto índice de contaminação do solo,
da água, do ar e apontaram para o adoecimento de pessoas em decorrência disso.
Pergunta-se se é possível delimitar no tempo o número de pessoas atingidas por
uma tragédia desta envergadura. Um canal de confiança das pessoas deve
permanecer aberto por décadas para que essas pessoas possam relatar os danos
sofridos, direto e/ou indiretamente e ter seus direitos assegurados. Para um
crime continuado, a garantia de direitos e a responsabilização também deve ser
continuadas.
4.1. A
assessoria Técnica como direito fundamental e como “Novos Direitos”
O Direito à assessoria técnica para as
pessoas atingidas por crime/desastres em decorrência da mineração é um “Novo Direito” inserido na realidade
fática do Sistema de Justiça brasileiro e, pode-se dizer que também é uma
conquista vinda da da luta dos/as atingidos/as, luta esta, travada pelas
pessoas atingidas pelo rompimento de barragens em Minas Gerais, iniciando pelo
município de Mariana. Isto, tornou-se um precedente importante para o País e
quiçá para o mundo.
Pelo conceito de Novos Direitos, não
se faz necessário que estes direitos sejam regulamentados para serem concebidos
enquanto tais. É primordial que seja efetivado e que seja resultado da
organização e das lutas populares. Isso foi o que se deu com a conquista da
assessoria técnica em Mariana, após o rompimento da Barragem de Fundão em 2015,
pois a Assessoria Técnica é algo real e concreto que se efetiva na Comarca de
Mariana a partir de muita luta e organização do povo atingido.
Reforçando a importância de entender a
assessoria técnica dentro do conceito de Novos Direitos e como direito
fundamental para reivindicar, nesse sentido, sua continuidade enquanto durar as
demandas das pessoas atingidas, importante lembrar que:
A atual Constituição Brasileira de 1988 deixa espaço aberto para a
possibilidade de novos direitos quando seu artigo 5º, parágrafo 2º, não exclui
outros direitos "decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte." (...). Entende-se que, para serem considerados
"novos direitos", faz-se necessário que resultem de demandas
populares e coletivas e não representem retrocessos (CARNEIRO, M. R. O 2019).
No mesmo sentido afirma o autor Leonardo
Fernandes dos Anjos, na obra denominada "Novos Direitos Urbanos", quando afirma:
Todos os movimentos de transformação do Direito decorrem de
alterações gestadas no seio da sociedade. Dessa forma, o que pressupõe a
existência dos direitos é o fato, que brota da (na) sociedade e condiciona a
elaboração do direito posto.[...] Os novos direitos urbanos [e rurais] nascem,
assim, de baixo para cima e não da iniciativa da autoridade do Estado (ius imperili). São “direitos achados na
rua”, surgem a partir da atuação pública de cidadãos e de grupos de interesse
formais e difusos que se posicionam quanto aos conflitos cotidianos no espaço
público urbano (DOS ANJOS, 2017, p. 27).
Os Novos Direitos, como o é o direito
à assessoria técnica às pessoas atingidas pela mineração, já compõem o
ordenamento jurídico brasileiro, visto que reconhecido e efetivado no curso da
Ação Civil Pública nº 0400.16.003473-4, de autoria do Ministério Público do
Estado de Minas Gerais (MPMG) em Mariana e nas demais medidas jurídicas
praticadas nesta Comarca. Isto em Mariana é fato e está amparado pelo rol de
direitos fundamentais da Constituição brasileira de 1988 que prever a
possibilidade de outros direitos fundamentais, para além dos já especificados
na Constituição.
Ocorre que a efetivação do direito à
assessoria técnica para as pessoas atingidas pela mineração precisa ser continuada
porque o crime/desastre socioambiental tem sido continuado. No caso de Mariana,
passaram-se mais de quatro anos e as famílias ainda não foram reassentadas; as
violações no âmbito da indenização/reparação integral são constantes; o não
reconhecimento do Cadastro e de sua metodologia, incluindo a matriz de danos
elaborada por especialistas de confiança dos atingidos são contestados pelas
empresas. Ademais, como dito acima, estudos demonstram que os danos decorrentes
do crime se expandem no espaço e no tempo, como, por exemplo, o índice de
contaminação de pessoas, do solo, da água e do ecossistema. Isso tudo faz emergir,
cotidianamente, novos danos para além dos já declarados no Cadastro e novas
categorias de pessoas atingidas, o que requer, a continuidade do trabalho de
assessoria à estas pessoas.
Por mais que se tente calcular o real
cenário do número de famílias atingidas por este tipo de crime/desastre para
participarem do processo de Cadastramento, a experiência da Cáritas, nos anos
de 2018 e de 2019, mostra a impossível tarefa de fechar este número, pois se
trata de uma realidade em aberto. A própria consciência de ser atingido/a, como
dito antes, vai acontecendo com o passar do tempo, quando as pessoas vão
sentindo os efeitos das violações.
Para um fato de tamanha proporção, sem
precedentes na história do Brasil, o Direito brasileiro também não está
preparado. Os institutos jurídicos precisam ser reinterpretados à luz do caso
maior e de cada caso concreto. O instituto da prescrição, por exemplo, precisa
ganhar outro corpo. Não pode ser justo uma pessoa se entender atingida cinco,
dez anos depois, quando as consequências da lama e suas contaminações chegaram
em sua vida e o Direito dizer para ela que o caso prescreveu. Qual seria o
marco temporal para a prescrição de um crime desta natureza? Eis uma tarefa
para o Direito.
4.2. Do cadastro iniciado
no ano de 2018 e continuado em 2019
A decisão para que a Cáritas
Brasileira assessorasse no processo de Cadastro dos atingidos e atingidas pelo
rompimento da Barragem de Fundão se deu em decorrência da constatação de que a
proposta de metodologia apresentada pelas empresas Samarco/Renova e Synergia
Consultoria Socioambiental não atendiam a realidade das pessoas atingidas em
Mariana.
Diante disso, iniciou-se um longo
processo de reformulação da proposta apresentada pelas empresas, o que foi
feito pela Cáritas, por meio da assessoria técnica, atingidos/as e parceiros/as.
Posteriormente, em audiência judicial realizada em outubro de 2017 foi definido
que a Cáritas aplicaria o Cadastro, por ser uma entidade de confiança dos/as
atingidos/as, o que resultaria no levantamento das perdas e danos sofridos em
decorrência do rompimento da barragem.
Até a presente data a Cáritas atendeu
mais de mil núcleos familiares que demandaram o cadastro, reconhecendo-se e se
autodeclarando atingidos. Deste número, mais de 900 famílias já tiveram o
processo finalizado e aguardam pela indenização ou estão em fase de negociação
com as empresas. A metodologia do Cadastro realizado pela Cáritas, construída
com os/as atingidos/as, supõe 05 etapas, quais sejam: 1) Aplicação do
Formulário; 2) Cartografia Social; 3) Vistoria (para o que se aplica); 4)
Tomada de termo individual; 5) Sistematização e elaboração de dossiês (um para
cada núcleo familiar). Para além disso precede a essas etapas o trabalho da
equipe de mobilização social que realiza os agendamentos para a realização de cada
uma das etapas.
Para a realização dessas etapas é
imprescindível a participação dos/as atingidos/as, pois, como dito, trata-se de
uma metodologia participativa. Isto
implica tempo e disponibilidade das pessoas, bem como é preciso considerar as
condições emocionais, de saúde, climáticas, etc., pois, etapas como a tomada de
termo, cartografia social e vistoria, em que as pessoas relatam o que vivenciaram
com o crime, muitas vezes, é preciso que seja agendado mais de uma vez. Isto é
perfeitamente compreensível e precisa ser respeitado, pois não bastasse o
sofrimento de tudo que vivenciou, as pessoas, muitas vezes, sentem-se novamente
revivendo as dores e as violências do ocorrido.
Ao finalizar o cadastro, as famílias demandam
da equipe de assessoria jurídica da Cáritas o acompanhamento para as reuniões
de negociação junto às empresas. Atualmente,
o projeto de promoção da Assessoria Técnica no município de Mariana atua com
três grandes frentes, quais sejam: a assessoria técnica propriamente dita que
faz o trabalho de acompanhamento das famílias nas temáticas do reassentamentos,
atendimentos psicossociais, etc.; o cadastro das famílias, como explicado acima
e a assessoria jurídica que acompanha as pessoas na fase de negociação
extrajudicial, mas que também presta informação, esclarecimentos, etc.
Tudo isso significou e significa muita
luta e conquista das famílias atingidas. Ter uma assessoria de confiança não é
algo dado. É conquistado. A experiência em Mariana sinaliza para a necessidade
disso. Uma assessoria independente, que passe pela escolha da comunidade e
pessoas atingidas deve ser algo obrigatório para que seja licenciado e aprovado
qualquer empreendimento que de certo modo vá atingir a população local e o meio
ambiente, direto e/ou indiretamente. É preciso cuidar preventivamente. É
preciso que isso seja garantido como direito fundamental. Nesse sentido, foi a
decisão recente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), ao julgar o
agravo de instrumento n.1.0400.15.003989-1/006 que afirmou: “a contratação
de assessoria técnica específica para os atingidos do Município de Mariana é resultado
de acordo celebrado (...) tendo em vista a situação de hipossuficiência técnica
e econômica das vítimas”. Isso deve ser garantido, não apenas para o
município de Mariana, mas para todas as famílias atingidas ao longo do Rio
Doce, famílias de Brumadinho e todos os municípios e populações afetadas pela
mineração que vivenciam, cotidianamente, o medo e as ameaças de rompimento,
além dos danos cotidianos de que são vítimas.
Considerações
finais
Nesse tempo em que a Igreja do Brasil
convida para mais uma Campanha da Fraternidade, entendemos imprescindível
trazer à baila esta reflexão, pois, pela luta das pessoas atingidas pela
mineração e em decorrência dela, a
assessoria técnica se inclui no rol dos Novos Direitos no Brasil e precisa ser
reconhecida como direito fundamental de todas as pessoas vítimas das
consequências da mineração e de grandes empreendimentos, devendo ser assegurado
de modo preventivo, inclusive, pois isso, como pede a Campanha da Fraternidade
de 2020, com inspiração no Evangelho, é um modo de “ver, sentir compaixão e
cuidar” das pessoas e da casa comum com toda sua biodiversidade. É uma premissa
para o alcance da justiça social e da ecologia integral.
Mariana, 25
de fevereiro de 2020.
DOS ANJOS, Leonardo Fernandes (Coord.). Novos direitos urbanos: necessidades
humanas que nascem nas cidades. Lisboa: Thya, 2017.