A CAMPANHA DA
FRATERNIDADE
DE 2016 E OS
CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS
CASA
COMUM, NOSSA RESPONSABILIDADE.
Maria do Rosário
de O. Carneiro[1]
Inspirada no texto bíblico do Profeta Amós, a Campanha tem como tema “Casa comum, nossa responsabilidade” e como lema “ quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca (Am 5,24).” O objetivo geral da Campanha é conclamar para que seja assegurado a todas as pessoas o direito ao saneamento básico.
Reconhecido pela ONU, em dezembro de 2015,
como Direito Humano, o saneamento básico envolve uma série de outros direitos,
como o abastecimento de água potável, o esgoto sanitário, a limpeza urbana e
rural, o manejo de resíduos sólidos, o controle de doenças, a drenagem de águas
pluviais, o cuidado com os rios, os nascentes e os mananciais, o combate ao uso
intensivo e extensivo de agrotóxicos, aos estragos socioambientais causados
pela mineração, dentre outros temas e direitos.
Quero me atentar para a questão dos
resíduos sólidos, um problema urgente no Brasil e no mundo, chamando atenção
para o importante, imprescindível e necessário trabalho desenvolvido pelas
catadoras e catadores de materiais recicláveis, com quem tenho trabalhado nos
últimos 06 anos, na luta por direitos e com elas e eles tenho aprendido também
que é preciso reciclar a vida, o direito e a justiça e acreditar na necessidade
da justiça social, construída coletivamente a partir dos injustiçados.
O Texto Base da Campanha da Fraternidade
traz alguns dados como os seguintes: cada brasileiro gera em média 1 quilo de resíduos
sólidos diariamente. Só a cidade de São Paulo gera entre 12 a 14 mil toneladas
diárias de resíduos sólidos. As 13 maiores cidades do país são responsáveis por
31,9% de todos os resíduos sólidos no ambiente urbano brasileiro. Segundo a Pesquisa Nacional de
Saneamento Básico, de 2008 do IBGE, divulgada em 2010: 50,8% do total dos
resíduos são levados para os lixões; 21,5%, para aterros controlados; e 27,7%, para
aterros sanitários; todos despejados no planeta Terra.
Outro dado alarmante é o fato de o Brasil continuar
recebendo lixo da América do Norte e da Europa. Em 2009 e 2010, portos
brasileiros receberam cargas de resíduos (LIXO) domiciliares e hospitalares. No
Brasil, os lixões e aterros, sem controle, localizam-se próximos ou em áreas
residências de populações empobrecidas, nas periferias das cidades.
Várias perguntas
que não podem se calar nesta Campanha da Fraternidade, entre as quais: e os
catadores de materiais recicláveis, milhares de trabalhadores espalhados pelas
ruas do Brasil, ou em associações e cooperativas de reciclagem recolhendo o que
descartamos e evitando que milhares de toneladas de resíduos sejam jogadas em
lixões e aterros? E estes trabalhadores? Como nos aproximamos deles? Que
importância damos ao seu trabalho? Conhecemos? Falamos deles em nossas igrejas,
em nossos espaços comunitários? Dedicamos parte de nosso tempo para
manifestar-lhes nosso apoio? Quais as condições de trabalhos deles? De que
precisam? Fazemos a coleta seletiva em nossas casas, apartamentos e igrejas? Em
nossos ambientes de trabalho? E se fazemos, qual destino damos? Quem são as
catadoras e os catadores de materiais recicláveis? O que esta campanha da
fraternidade nos diz sobre eles e elas?
Com minha experiência na advocacia
popular e na militância na área dos direitos humanos, sobretudo no trabalho com
as cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis e no seu
Movimento Social Político - o Movimento Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR)[2] -,
em Minas Gerais, percebo a força dessa
luta em prol da efetividade dos direitos humanos assegurados na Constituição
brasileira, forjando instrumentos jurídicos que contribuem na implementação dos
direitos fundamentais constitucionais inscritos na Constituição, na legislação infraconstitucional e nas
políticas públicas.
A Política Nacional de Resíduos
Sólidos, Lei 12.305 de 2010, por exemplo, possui fortes contribuições da luta
dos catadores, como, por exemplo, o fato de o resíduo sólido reutilizável e
reciclável passar a ser reconhecido no Brasil como “um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e
promotor de cidadania”[3].
Com a luta dos catadores, a lei
de resíduos sólidos trouxe também o princípio do ‘protetor-recebedor’, agasalhando
neste princípio, sem dúvida, o trabalho desenvolvido pelas organizações de
catadores de materiais recicláveis, na medida em que, diariamente, devolve para
a cadeia produtiva toneladas de materiais recicláveis - plástico, papel, metal,
vidros, dentre outros -, que poderiam ser despejados no planeta Terra. Isso sem
dizer do importantíssimo trabalho de mobilização e educação ambiental, da
reciclagem de valores, princípios e do próprio direito, realizado pelos
catadores organizados em cooperativas.
A atual Constituição brasileira
de 1988 no art. 5º, incisos XVII a XXI assegura a liberdade de associação e o
cooperativismo como modelo de economia, além de legislações
infraconstitucionais que regulamentam o cooperativismo e instituem políticas de
economia popular solidária. Contudo, as pressões do mercado e do capital
hegemônico sufocam e asfixiam muitas vezes a sobrevivência dos grupos que optam
por este caminho.
O Jornal El País, em matéria online publicada em
18/10/2015, alertou para um problema que já vem sendo uma grave realidade no
Brasil e na América Latina: “depois da
água, gestão de lixo pode ser o novo foco de crise no Brasil”.[4]
A matéria chama atenção para o fato de que, só no Brasil, em 2014, 30 milhões
de toneladas foram levadas para lixões, que são os considerados aterros
irregulares.
Levar o
lixo para os aterros, lixões ou como se queira chamar, é mantê-lo dentro do
planeta Terra e, pior, de forma ambientalmente inadequada. A Lei 12.305, de
2010, estabeleceu como prazo máximo agosto de 2012 para que os municípios
apresentassem um plano de gestão dos resíduos sólidos e agosto de 2014 para que
os municípios acabassem com os lixões. Nenhum dos dois prazos foi cumprido pela
maior parte dos municípios brasileiros.
Com forte
pressão dos prefeitos brasileiros, em julho de 2015, o Senado Federal aprovou a
prorrogação do prazo para os municípios acabarem com os lixões no Brasil: as
capitais e municípios de regiões metropolitanas têm, agora, até 31 de julho de
2018 para fazer isto e as cidades com mais de 100 mil habitantes terão até o
final de julho de 2019. Os municípios entre 50 e 100 mil habitantes terão até o
final de julho de 2020 e os municípios com menos de 50 mil habitantes terão até
julho de 2021 para acabar com os lixões. A Presidenta Dilma vetou esta medida,
mas trata-se de um grave problema social e ambiental urgente, uma vez que até agora
os prazos não foram cumpridos. Os direitos da população e da natureza continuam
sendo adiados em benefício dos interesses do mercado e do capital.
Com a
quantidade de resíduos sólidos gerados no Brasil crescendo em progressão quase
geométrica, o cenário se tornou crítico e preocupante. A grande atuação e
investimentos por parte dos gestores públicos giram em torno do destino final
dos resíduos sólidos, chegando-se a cogitar e até executar tecnologias de
incineração, mesmo com a comprovação de que esta tecnologia é um grave problema
para o meio ambiente e para a saúde pública.
A
Política Nacional de Resíduos Sólidos estabeleceu uma hierarquia de ações a serem
observadas e respeitadas pelos gestores públicos no manejo dos resíduos
sólidos, quando assim definiu: “Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser
observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização,
reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente
adequada dos rejeitos”.[5]
Observa-se
que o destino final ambientalmente adequado é a última etapa de uma série de
ações a serem executadas pelos gestores públicos. O destino final é a última
delas, mas o que se nota na maioria dos municípios é o destino final como a
primeira, levando para lixões e aterros todo o resíduo sem fazer uma prévia
coleta seletiva, triagem e reciclagem e fortalecendo o trabalho dos catadores.
Estudos
demonstram que se os municípios realizassem uma eficiente política de redução
do consumo, educação ambiental, implantassem uma boa política de coleta
seletiva e reciclagem popular, com a participação das organizações de catadores,
pouca coisa ou quase nada teria que ser enviado para aterros ou outros locais
de destino final.[6]
Outro
problema a ser levado em consideração é a crescente disputa do “lixo” das
cidades pelos setores empresariais e pela indústria que veem neste material uma
fonte de lucro e geração de riquezas. Apesar da prioridade assegurada aos
catadores e suas organizações, inclusive com a possibilidade de contratação
desses grupos pelos municípios, com dispensa de licitação e remuneração pelos
serviços prestados, poucos são os municípios do Brasil que asseguram esta
prioridade.
Estabelecer
uma nova lógica produtiva, baseada no respeito e na economia popular solidária,
é o que buscam os empreendimentos de catadores, considerando a liberdade
associativa assegurada na atual Constituição.
Os
catadores, o MNCR e suas organizações seguem resistindo, lutando pelo seu lugar
neste espaço. Defendem o trabalho com dignidade e o reconhecimento pelos
serviços prestados há centenas de anos no Brasil, na América Latina e no mundo.
Retiram diariamente milhões de toneladas de materiais recicláveis evitando que
os mesmos sejam jogados em aterros ou lixões.
Além da
forte organização no Brasil, em nível de América Latina, estes trabalhadores
estão organizados pela “Red
Latinoamericana de Recicladores” e buscam dialogar entre os países com
trocas de experiências visando melhorar as condições de trabalho dos
recicladores em suas bases.[7]
O 3º Seminário Internacional de Rotas
Tecnológicas dos Resíduos Sólidos, organizado pelo Instituto Nenuca de
Desenvolvimento Sustentável (INSEA)[8] e
pelo Observatório da Reciclagem Inclusiva e Solidária (ORIS), em setembro de
2015 em Belo Horizonte, apontou para a possibilidade de reciclagem de 100% do
lixo, experiências que já vem acontecendo em San Francisco, nos Estados Unidos
da América, e em outros lugares do mundo.
No Brasil, como dito acima, a
dificuldade no cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos, como
acabar com os lixões, fazer os Planos Municipais e implantar uma eficiente
política de coleta seletiva com a participação dos catadores, aponta para dados
alarmantes: aumenta a quantidade de municípios que não recicla os materiais
recicláveis e a geração de resíduos aumentou cinco vezes mais que a população
entre 2003-2014.
Os catadores, protagonistas da
tecnologia social da reciclagem popular, demandam por reconhecimento, o que
passa pela remuneração justa dos serviços prestados para as cidades e para a
população, na medida em que recolhem o material reciclável e dão um destino
ambientalmente adequado. As organizações de Catadores podem ser contratadas
pelas prefeituras, inclusive com dispensa de licitação, nos termos do artigo 24
da lei 8666 de 1993, o que também foi uma conquista decorrente de suas lutas.
Casa comum, nossa responsabilidade:
nesse tempo em que a Campanha da Fraternidade nos convida a refletir e agir na
defesa e proteção da casa comum, fica o convite para aproximarmos da vida e do
trabalho desenvolvido pelos catadores e suas organizações. Toneladas de
matérias recicláveis que seriam jogadas no planeta Terra, em nossos rios e
oceanos são por eles reciclados, reaproveitados com um destino final
ambientalmente adequado. Mas, como vivem? Como trabalham? De que precisam?
Afinal, trabalham diariamente, por eles, por mim, por você e pelo planeta Terra,
nossa casa comum. “Vinde e vede![9]”
Belo Horizonte, 08 de fevereiro
de 2016.
[1]
Assessora jurídica do Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável (INSEA) e
do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) em Minas
Gerais. Email: mrosariodeoliveira@gmail.com
e Blog: mariadorosariocarneiro.blogspot.com
[2] http://www.mncr.org.br/
[3]
Lei 12.305 de 2010. Política Nacional de Resíduos Sólidos. Art. 6º, II e VIII.
[4]
Acessível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/01/politica/1443722260_724627.html.
Acesso em 06/11/15.
[5]
Art. 9º da Lei 12.305 de 2010.
[6]
A tecnologia social da reciclagem popular foi criada
pelos catadores de materiais recicláveis e estes vêm aperfeiçoando a técnica no
manejo dos resíduos sólidos há centenas de anos no Brasil e no mundo.
[7]
Acessível em: http://www.redrecicladores.net/pt/.
Acesso dia 06/11/2015, às 10:34h.
[8] http://www.insea.org.br/
[9]
João 1, 39.