domingo, 21 de fevereiro de 2021

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2021: FRATERNIDADE E DIÁLOGO - COMPROMISSO DE AMOR - Um olhar a partir da urgente defesa da dignidade humana e planetária.

 


 Maria do Rosário Carneiro[1]




Outra vez é quaresma! Tempo no qual as igrejas cristãs fazem memória do deserto vivido por Jesus de Nazaré por quarenta dias, antes de iniciar sua vida pública, passando por diversas tentações. Passada essa experiência, Jesus reafirmou sua opção na defesa da vida de tal modo que, como consequência de seu ensinamento e de suas ações, foi condenado pelos poderes dominantes da religião, da economia e da política à pena de morte mais cruel de seu tempo, isto é, a morte na cruz. Contudo, antes da crucifixão, julgado e condenado por estes poderes que, atuando conjuntamente, atendiam ao comando do império romano que, não muito diferente dos tempos globalizados atuais, pretendia-se universal e temia qualquer tipo de ameaça.

 Como, assim, um homem do interior, de uma pequena cidade rural, de uma colônia quase invisível no mapa como era Nazaré da Galileia, filho de um marceneiro e de uma mulher pobre e camponesa, questionar os poderes do grande império? Como, assim, esse camponês jovem organizar trabalhadores/as, pescadores/as e questionar a obrigação de pagar tributos ao templo para serem abençoados por Deus e para recuperarem a saúde? Como, assim, este homem acolher mulheres, prostitutas, leprosos, ateus, cobradores de impostos, etc.? Como, assim, promover o diálogo com todas as crenças e modos de vida e ainda testemunhar que Deus, invocado sob tantos nomes, é o Deus do diálogo e do amor infinito?

É o que a 5ª Campanha da Fraternidade Ecumênica, em 2021, propõe: o diálogo como modo de amar e o amor como ética da vida. E não é de se assustar as resistências que logo apareceram de alguns grupos contrários ao tema e à metodologia da Campanha da Fraternidade. O diálogo libertador incomoda. Incomodou no tempo de Jesus também. Mas que tipo de diálogo a Campanha da Fraternidade Ecumênica  propõe?

Iniciativa assumida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desde 1963, a Campanha da Fraternidade é um dos projetos importantes da Igreja Católica e das Igrejas cristãs que compõem Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC),[2] por isso, ecumênica. Trabalha, a cada ano, temas de fundamental importância para avançar na construção da justiça social e no projeto de sociedade que tenha como primazia a dignidade humana e planetária, a defesa dos direitos humanos e dos direitos da natureza, bem como a construção da Ecologia Integral, o que também podemos chamar de Sociedade do Bem-viver e Conviver.

Campanha é um conjunto de esforços e ações diversas, coordenadas e articuladas, visando alcançar um objetivo. Constantemente tomamos conhecimento de uma série de campanhas que são realizadas por distintos grupos e organizações, com as mais diversas intenções. Nesse caso, dizemos de uma campanha que vem sendo organizada pela Igreja, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pelo CONIC, que tem como objetivo a Fraternidade. 

Se buscarmos o significado de fraternidade nos mais diversos tipos de dicionários, remete-nos ao “laço de parentesco entre irmãos, irmandade”. Embora pareça algo simples de se viver, em tempos de tanto individualismo e intolerâncias, torna-se algo extremamente difícil e necessário. Ser fraterno, colocar-se como irmãs e irmãos uns dos/as outros/as é algo que se faz urgente para o bem da humanidade e isso não se faz sem amor, respeito e diálogo.

Utilizar-se da tática de fazer uma campanha para estimular a fraternidade entre as pessoas e das pessoas para com a natureza é uma ação sábia da Igreja que se repete todos os anos durante o período quaresmal, desde o ano de 1963. Mas, a Campanha da Fraternidade, quer estar para além de uma campanha. Quer se transformar em gestos concretos de compromisso com a fraternidade e não há fraternidade sem ações que promovam solidariedade, justiça social e a paz verdadeira, que é fruto da justiça.

 

Importante levar em consideração o ano em que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil: 1963/64. Neste ano, o Brasil vivia tempos muito difíceis e brutais. da ditadura militar-civil-empresarial. A democracia havia sido arrancada das mãos do povo e o poder que governava não apenas retirou as liberdades, mas torturava, matava e fazia centenas pessoas desaparecerem, sobretudo se essas pessoas demonstravam compromisso com a fraternidade e com a justiça social.

Dizemos que a Campanha da Fraternidade foi assumida por toda Igreja do Brasil em 1964 porque não o foi assim desde seu embrião. Importante destacar que ela nasce no coração da Cáritas Brasileira, no nordeste do país. Em 1961, três padres responsáveis pela Cáritas no Rio Grande do Norte organizaram uma Campanha para arrecadar fundos para as atividades da Igreja local e, no ano seguinte, durante a quaresma, essa campanha recebeu o nome de “Campanha da Fraternidade”. Isto ocorreu na cidade de Natal. Diante da exitosa experiência, no ano seguinte, 1963, dezesseis dioceses do Nordeste também realizaram a Campanha da Fraternidade.

Diante disso, a CNBB, imbuída pelo espírito do Concílio Vaticano II[3], assumiu a Campanha da Fraternidade como projeto da Igreja no Brasil, à luz das Diretrizes Gerais de sua Ação Pastoral Evangelizadora. Lembrar o marco temporal em que nasce a Campanha da Fraternidade e seu contexto político, econômico e social é importante para falar desta Campanha. Cinquenta e seis anos depois, o País segue vivendo tempos difíceis, em que a fraternidade é sufocada pelos males do modelo econômico capitalista que prega o individualismo entre as pessoas, faz crescer a fome, o número de pessoas sem moradia digna, sem-terra, sem trabalho, vítimas da injustiça social, agrária, urbana e ambiental. Um olhar sobre os temas da Campanha da Fraternidade ao longo destes cinquenta e seis anos leva a perceber a diversidade de gritos que se fizeram ecoar e que seguem ecoando em nosso chão. 

Na década de 1970, a Campanha da Fraternidade trouxe temas como participação, reconciliação, promoção humana, serviço e vocação, a libertação por meio do amor, reconstrução, repartir o pão, comunidade, família, mundo do trabalho e migrações, perpassaram os temas da campanha. Já na década de 1980, os temas giraram em torno do mundo das migrações, saúde, educação, violência, vida para todos, a fome, luta pela terra, o menor, povo negro e comunicação. Com a virada do milênio, a dignidade humana aparece como tema, seguida da temática das drogas, povos indígenas, pessoas idosas, a questão da água, a promoção da paz, pessoas com deficiência, a Amazônia, defesa da vida, segurança pública, economia, a vida no planeta, saúde, juventude, tráfico humano, igreja e sociedade, cuidado com a casa comum, biomas brasileiros, superação da violência e políticas públicas. No ano de 2020 A Campanha da Fraternidade abordou o tema “Fraternidade e Vida: dom e compromisso,” inspirado no Evangelho de Lucas, “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,25-37). Neste ano de 2021, “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” é o Tema da Campanha da Fraternidade Ecumênica, com Lema Inspirado na carta aos Efésios 2,14a “Cristo é nossa Paz: do que era dividido, fez-se unidade”. 

Costumo escrever algo neste tempo de Campanha da Fraternidade e, quase sempre encontrando no tema profunda relação com as temáticas atuais e presentes em minha atuação como advogada popular. Já escrevi sobre as pessoas em situação de rua, os/as catadores/as de materiais recicláveis, as pessoas sem teto e na luta por moradia, pessoas atingidas pela mineração e o direito à assessoria técnica para a reparação integral. Este ano, sinto-me interpelada a escrever mais algumas linhas sobre o tema. Talvez retomando coisas já ditas e outras novas e este texto tem do que disse ano passado e em outros anos atrás. “Repetir, repetir. Até ficar diferente”, disse o poeta Manoel de Barros. É preciso repetir até que um dia transformemos esta sociedade marcada por tantas injustiças sociais. Transformar, sobretudo, este modelo político-econômico para o qual, quanto menos diálogo do povo com o povo, melhor as condições de lucro e poder. 

Como aponta o projeto de sociedade pautado na Ecologia Integral e na Sociedade do Bem-Viver e Conviver, tudo está interligado nesta “casa comum.” A Pandemia da Covid-19 demonstrou isso de modo muito concreto. Esta pandemia é resultado, sem dúvidas, dos males provocados por este sistema capitalista de morte. Para esse sistema, vale o lucro e não a vida. Sobretudo a vida de quem não detém poder econômico. Mas, a pandemia também mostra que, se o mal, praticado por alguns pode atingir a todos, o bem e o amor, por meio do diálogo e de ações concretas de defesa da vida, também podem ou podem ainda mais, atingir a todos e todas e a natureza, inclusive.  Recorro aqui ao ensinamento da Capitã Pedrina de Lourdes Santos (mãe de Axé) em umas das tantas lives denunciando as violências da mineração em Minas Gerais quando convidava a seguirmos “levando juntos a bandeira do respeito, do amor e de nossa liberdade” e ainda, falando da relação ser humano-natureza, interrogava: “ou você não entendeu que está tudo vive?”.

Dentre os objetivos da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021, ao conclamar para o diálogo como caminho para a paz, está denunciar as diferentes violências praticadas e legitimadas indevidamente em nome de Jesus. Nunca se viu tanto uso do nome de Deus para legitimar políticas de morte, de racismo, machismo, homofóbicas, criminalização dos pobres e de seus movimentos e organizações de luta. Aliás, não se pode dizer que nunca se viu. Já se viu muito na história da humanidade. Não é possível esquecer que a retórica do teocentrismo, do saber e da fé universal queimaram muitas mulheres chamando-as de bruxas, matou muitos seres humanos, simplesmente porque eram diferentes dos que aqui chegaram para invadir, na forma de acreditar, de ser de viver e se relacionar com a natureza e de amar. No Brasil, isso é uma prática desde a colonização. Como diferente do europeu colonizador que aqui chegou, invadindo e encobrindo (não descobrindo como pregado), como afirma Henrique Dussel[4], não houve diálogo. Exterminou-se e encobriu. E tudo isso em nome do lucro e de Deus. 

Os demais objetivos da Campanha apontam para um tempo novo. O que o povo organizado, que sempre resistiu às opressões e injustiças, vêm tentando construir: o compromisso com as causas que defendem a casa comum; a contribuição para superar as desigualdades; animar o engajamento e ações concretas de amor ao próximo; promover a cultura do amor como forma de superar a cultura do ódio; fortalecer a convivência e a comunicação inter-religiosa e eu acrescentaria com todas as formas de crer e não crer, independente de optar ou não por alguma religião e compartilhar experiências concretas de diálogo e convívio fraterno.

Dialogar supõe respeito e respeito supõe viver o amor para além de um sentimento, mas o amor como ética da vida e como exercício cotidiano de vida. O diferente de mim não é uma ameaça. É algo que pode me fazer melhor como ser humano. E em tempos de mundo virtual e de pandemia, com o necessário isolamento social, o diálogo se torna mais desafiador e necessário. É preciso exercitar. Como me sinto mais humana depois que passei a conviver com pessoas de religiões de matriz ancestral africana, pessoas que são ateias e/ou que ainda não se convenceram da existência de Deus; amigas e amigos homossexuais nas suas mais distintas formas de concepção de si mesmas. Pessoas que seguiram toda sua vida tentando se entender enquanto seres humanos neste mundo. Vivendo tantas formas de angústia e de sofrimento por não serem escutadas e entendida, por causa da falta de diálogo. Pessoas que preferiram interromper a vida porque já não mais suportavam a violência da falta de respeito, de acolhimento e de diálogo neste mundo cheio de moral perversa e de injustiças. O diálogo com o diferente me humaniza. 

A Campanha da Fraternidade Ecumênica convoca para o diálogo como caminho para a paz. E este é um dos caminhos. Os opressores investem no diálogo entre si e constroem muros e modos de matar. Precisamos construir e fortalecer o diálogo como ética da vida e como tática para a grande estratégia de construção da sociedade que queremos viver.

 É preciso reunir as bandeiras e, juntos e juntas, marcharmos na grande romaria da vida rumo à reconstrução da casa comum, da dignidade humana e planetária, pois, dignidade é direito. Isso não pode ser uma tarefa para amanhã. Precisa-se começar ou continuar ainda hoje.

É preciso sentarmos todos e todas na mesma mesa e partilharmos a vida, a fé, o pão, as alegrias e as dores. Mas, essa mesa, a da partilha e do diálogo, precisa ser nas calçadas e ruas das cidades onde moram nossos irmãs e irmãs de rua; nas celas superlotadas dos presídios; nas casas de prostituição onde muitas mulheres trabalham para ganhar o pão; nas carroças dos/as carroceiros/as expulsos das cidades e de seu ganha-pão; nos galpões de reciclagem onde pessoas esperam pelo que descartamos e por políticas públicas para sobreviver; nas pequenas propriedades rurais onde os camponeses e camponesas, todos os dias, são empurrados e expulsos/as pelo agronegócio; nos rios mortos pela lama maldita do capital e da mineração e nos lares das pessoas por ela atingidas; nos terreiros; nas casas das milhares de famílias brasileiras que foram contaminadas pela pandemia da Covid-19 e/ou que sequer puderam velar seus parentes e são vítimas do descaso com a saúde pública. A dignidade humana e planetária precisa ser respeitada.

Enfim, essa mesa do diálogo e da partilha precisa ser preparada em muitos lugares e situações. Como no caso do Nazareno da pequena Galileia, a vida terá a última palavra e não será tarde para aprendermos que diálogo é caminho para a fraternidade, a paz e o amor como ética e modo concreto de viver a vida. Que não seja apenas mais uma Campanha da Fraternidade. Caso ainda não consiga entender, respeite! O respeito também é diálogo. A violência não! E o Deus de Jesus escolheu o caminho do diálogo. Fez-se um ser humano e o humano também é diferente de Deus. Que a Fraternidade seja um modo cotidiano de vivermos a vida respeitando e dialogando com as diferenças, construindo, assim, a dignidade humana e planetária.

 

Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2021.

Com Ternura e Resistência.



[1] Advogada, Mestra em Direito (Novos Direitos, Novos Sujeitos) pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP). Blog: www.mariadorosariocarneiro.blogspot.com Email: mrosariodeoliveira@gmail.com

[2] Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia (Siríaca), Aliança de Batistas do Brasil, Igreja Betesda e Centro ecumênico de serviços de Educação Popular.

[3] Concílio ecumênico convocado pelo Papa João XXIII no dia 25 de janeiro de 1959, 90 dias após o início de seu papado, objetivando uma avaliação da Igreja e de seus projetos no sentido de um maior compromisso com o Evangelho, opção preferencial pelos pobres e escuta dos clamores do povo.

[4] DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. A origem do “mito da modernidade”. Petrópolis: Vozes, 1993.

 

4 comentários:

  1. Rosário, obrigada por esse convite ao diálogo com o olhar enlamaçado das vivências das/os pobres de Javé.

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  2. Rosário, obrigada por nos trazer esta reflexão, sua sensibilidade e firmeza na escrita e transmissão da palavra e do entendimento do que é ser um verdadeiro cristão. Que esta CFEcumenica seja uma luz nestes tempos tão obscuros.

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  3. Suas palavras proféticas, faz um clarão na escuridão que atravessamos e lança um farol de utopia ao tempo novo que virá. " Se calarem a voz dos profetas, as pedras gritarão", e seu texto soou como uma música: " faz escuro, mas eu canto", seguimos juntos cantando essa canção, " ...cantada de novo, no olhar homem e da mulher a certeza do irmão, reinado do povo". Parabéns irmã Rosário.

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  4. Parabéns pelo belo texto; Deus vos abençoe

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