quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Luta por direitos da População em Situação de Rua e dos catadores de Materiais Recicláveis

A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS EM SUAS LUTAS POR DIREITOS[1]

Maria do Rosário de Oliveira Carneiro[2]
            Pedro Paulo Barros Gonçalves[3]


1 A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

A população em situação é considerada um grupo heterogêneo que apresenta como característica comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e utiliza os logradouros públicos, as áreas abandonadas e desocupadas como espaço de moradia e de sustento. Encontra-se entre um dos grupos mais vulneráveis no Brasil[4].
O fenômeno da população em situação de rua possui múltiplos determinantes, e esses estão associados, certamente, à trajetória de vida, entretanto, o seu determinante mais significativo diz respeito à perpetuação do histórico processo de produção e reprodução de desigualdades sociais[5]. Ademais, deve-se levar em conta que esse processo é muito mais perverso quando se considera a especificidade que o mesmo assume nas periferias e semiperiferias do capitalismo, como é o caso de muitos países da América Latina e em especial, o brasileiro, aqui analisado. Em nosso contexto, observa-se a ausência ou ineficácia de políticas públicas voltadas para lidar com as situações de vulnerabilidade social dessa população. Restrições e obstáculos ao acesso a direitos sociais compõem a condição de vulnerabilidade da população em situação de rua, impostos pelas barreiras da seletividade e que se manifestam também no acesso à justiça.
            Como consequência dessa vulnerabilidade decorrente da condição social observou-se que esse grupo populacional, situado à margem da sociedade, é vítima de descaso, discriminação, preconceito e desprezo que resultam, em muitos casos, em ações violentas de agressão e muitos homicídios. Ademais, o desconhecimento sobre a situação das pessoas em situação de rua contribui para a formação de uma compreensão não só equivocada, mas sobretudo preconceituosa e discriminatória, o que leva à criminalização dessas pessoas em razão de sua condição social[6].
            Pesquisa realizada pelo Governo Federal em 71 municípios do país, publicada em 2008, incluindo as capitais e cidades com mais de 300 mil habitantes evidenciou a presença de 31.922 pessoas adultas em situação de rua. Entretanto, é importante observar que essa pesquisa não contabilizou a população em situação de rua das metrópoles de São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, por exemplo, o que subestima o número desse público no Brasil, já que as cidades citadas anteriormente pesam sobremaneira na incidência do fenômeno em tela. Feita essa ressalva, os dados levantados pela pesquisa apontam que 82% da população é predominantemente masculina, 53% das pessoas entrevistadas possuem entre 25 e 44 anos, apresentam um nível de renda baixo e 74% sabem ler e escrever..
O CNDDH desde sua inauguração, em abril de 2011, recebe e acompanha casos de violência contra a População em Situação de Rua em todo o país, tendo registrado número expressivo de violações de todo tipo, sobretudo de homicídios.  
De sua fundação, em abril de 2011 até 11 de setembro de 2013, o CNDDH registrou 1.291 denúncias de violações, realizou 311 atendimentos diretos (pessoas em situação de rua e catadores de materiais recicláveis que foram ao CNDDH) e 38 atendimentos coletivos (grupos de pessoas em situação de rua, associações e cooperativas).
Das denúncias, 634 são homicídios de pessoas em situação de rua, sendo que 140 homicídios ocorreram no Estado de Minas Gerais. Entretanto, é importante observar que o alto número de denúncias de homicídios no estado de Minas Gerais se dá também, entre outras razões, devido a uma maior facilidade no acesso a essas informações, já que o CNDDH situa-se nesse estado e em razão da interlocução do Centro com diferentes instituições do poder estatal e da sociedade civil organizada.
Dentro das categorias de violações com as quais trabalha o CNDDH, que estão em consonância com a tipologia de violações da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em primeiro lugar está a violência física, com um alto número de homicídios, e em segundo lugar, a violência institucional. Essa última caracteriza-se, grosso modo, por violência praticada por instituições que agem de modo a não cumprir as atribuições de sua razão de ser, e com excesso. Nessa categoria são incluídas a violência praticada por instituições de segurança (autoridade policial, guardas municipais, guarda privada), o abuso de autoridade, a omissão, a recusa de atendimento, a ausência de acesso a serviços, e outros tipos.
Os dados e o trabalho realizado pela equipe do CNDDH constatam que os serviços de prevenção e enfrentamento à violência contra a população em situação de rua ainda são insuficientes e/ou ineficazes. É incontroverso e já consolidado que a ausência ou ineficiência de políticas públicas que garantam os direitos sociais fundamentais contribui diretamente para o aumento da violência que atinge esse público.
Em face desse contexto de inúmeras violações e tendo em vista a perspectiva de garantia de direitos, verificamos que há a ausência de políticas, como as de moradia, saúde, trabalho, educação, entre outras, que promovam a real possibilidade de processos de saídas das ruas, mesmo depois da criação de uma política específica para esse grupo populacional, a Política Nacional, instituída pelo decreto federal 7.053/09, que vem reiterar o já assegurado na Constituição brasileira.




2 OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

             Os catadores de materiais recicláveis, enquanto profissionais que catam, selecionam e vendem materiais recicláveis e reaproveitáveis, têm forte relação com a rua pelas características de seu trabalho. Muitos deles viveram ou vivem em situação de rua, outros utilizam a rua como espaço de catação.
Atualmente, mesmo com o reconhecimento nacional de um protagonismo histórico na coleta seletiva e na reciclagem, esses trabalhadores enfrentam o desafio de lutar contra os projetos excludentes, originados pelo próprio poder público, sobretudo com as Parcerias Público Privadas (PPPs) e a  ameaça de incineração de resíduos, podendo extinguir a matéria prima básica do seu trabalho, além de causar graves danos ao meio ambiente e a saúde pública.
             Com o trabalho precário e sem a devida valorização, além da exposição constante a riscos e violências, os catadores de materiais recicláveis têm lutado por conquistar respeito e reconhecimento em todo o país.
      A Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei 12.305 de 2010, é um marco regulatório abrangente e um dos seus principais objetivos é a uniformização dos princípios e linhas gerais da gestão dos resíduos sólidos em todo o território nacional. Tal política é extremamente importante, pois pode estimular o debate para a implantação da mesma nos estados e municípios, já que, quando se trata desses entes federados, há vários equívocos no tratamento da questão.
O art. 9o da Lei 12.305/10 de certa forma é uma garantia para as Organizações de Catadores, pois estabelece uma ordem (hierarquia) de prioridade para os gestores públicos: “a gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos”. Sendo assim, não se pode realizar o destino final dos resíduos sem realizar as etapas anteriores, como a reutilização e a reciclagem.
Contudo, o mesmo artigo que traz uma possível garantia, traz uma grande ameaça em seu parágrafo primeiro ao afirmar que no que diz respeito aos resíduos, “poderão ser utilizadas tecnologias que visam à recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos”, desde que tenha sido comprovada sua viabilidade técnica e ambiental e com a implantação de programa de monitoramento de emissão de gases tóxicos aprovado pelo órgão ambientalNão se fala, por exemplo, da questão da necessidade e viabilidade da inclusão social que, para dizer o mínimo, é tão importante quanto.
Dentre as tecnologias que visam à recuperação energética está o “fantasma” da incineração que além de representar uma ameaça ao meio ambiente e a saúde pública, representa uma ameaça aos catadores e suas organizações, por passar pela queima da matéria prima de seu trabalho.
Alertou Dra. Margaret Matos de Carvalho, do Ministério Público do Trabalho da 9ª Região, em artigo por ela escrito, que não é possível ser adotada, no Brasil, qualquer tecnologia de recuperação energética que seja emissora de dioxinas e furanos, como a tecnologia da incineração, por força da subscrição, pelo Brasil, da Convenção de Estocolmo. Além disso, as informações são de que as cinzas da incineração podem representar 30% do processo e precisará de aterro especial, pelo nível de contaminação.
Um dos grandes avanços da Política Nacional de Resíduos Sólidos é que se trata de uma política pública de caráter afirmativo, destinada a enfrentar a discriminação que sofre o grupo social de catadores e catadoras de material reciclável  vindo ao encontro de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. (Art. 3º, III da CF/88).
A eliminação e a recuperação dos lixões (com prazo para 2014) prevista na Política Nacional devem ocorrer concomitantemente com a inclusão social e a emancipação econômica dos catadores, através da integração deles na gestão dos resíduos sólidos, de forma compartilhada com os gestores públicos.
Também é previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos a contratação da prestação de serviços dos catadores e suas organizações para a continuidade do trabalho que já realizam, asseguradas todas as garantias.
A melhor proposta apontada para o Brasil para a gestão dos resíduos sólidos, com a inclusão dos trabalhos dos catadores, é a reciclagem e a compostagem, o que possivelmente corresponde a um valor menor que a incineração.
A compostagem como adubo orgânico pode também contribuir com a solução de outro grande problema no Brasil que é a utilização de alto índice de agrotóxicos na produção de alimentos.
Daí a importância de ampliar as lutas e juntar as bandeiras. O tema do meio ambiente diz respeito a toda coletividade, pois o direito a um meio ambiente equilibrado é direito de todos.
Os direitos fundamentais dos catadores de material reciclável tem que  ser respeitados e efetivados, suas organizações precisam ser fortalecidas e os gestores públicos, no Brasil inteiro, não podem se esquecer que, além da obrigação constitucional e legal de garantir tais direitos, possuem uma imensa dívida com estas pessoas trabalhadoras pela grande contribuição no cuidado com o meio ambiente e pela inclusão de tantas pessoas no acesso ao trabalho por meio de suas organizações. O desrespeito a esta história configura uma imensa violação.
A agenda da garantia pelos Direitos Humanos no Brasil e em todo o mundo foram conquistas históricas que exigem a continuidade da luta para que esses sejam efetivamente respeitados. Ademais, deve-se seguir a luta para que outros direitos, como os direitos sociais e o direito à cidade, por exemplo, sejam assegurados, bem como a luta pela construção de uma ordem econômica com outras características. Uma economia que abrigue a ética e a justiça social, o que muito caracteriza o trabalho dos catadores e catadoras de materiais recicláveis.
Por fim, vale dizer que apesar de cada um dos públicos aqui tratados (a população em situação de rua e os catadores de materiais recicláveis) possuírem suas especificidades, eles se encontram em suas lutas pela efetivação de direitos em um lugar comum, a rua. A rua é o lugar onde vivem e/ou trabalham, e faz com que sonhem com um futuro melhor e com mais justiça social. E é por essa razão que a luta deles também é, ou deve ser, de todos nós.



[1] Texto elaborado para contribuir com a discussão no Fórum Mundial de Direitos Humanos em Minas Gerais, realizado nos dias 19 e 20 de setembro de 2013.

[2] Advogada do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH).

[3] Técnico Cientista Social do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH).

[4] Conceito embasado no Decreto Presidência n° 7.053 de 2009 que estabeleceu a Política Nacional para a População em Situação de Rua.

[5] O fenômeno população em situação de rua e suas origens e perpetuação é descrito por Maria Lucia Lopes da Silva em Trabalho e População em Situação de Rua no Brasil – São Paulo: Cortez, 2009.
[6] SILVA, Maria Lucia Lopes, 2009.

3 comentários:

  1. Oi Rosário, bom dia! (aliás, esse sol de domingo está ótimo, não é mesmo? Hehe)

    Espero que este seja o nosso primeiro trabalho de muitos!

    Abraço, Pedro.

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    1. É Pedro! O sol me traz boas recordações e saudades do nordeste, sobretudo quando ele provoca as chuvas de verão. Vamos sim, escrever muito ainda.... Nossa equipe do CNDDH tem muita experiência boa para compartilhar.
      Grande abraço,
      Rosário.

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  2. Olá Rosário, belas lembranças essas suas. Muito bonito o que disse, me fez lembrar de minha terra natal, também no interior... Êta nós e os nossos sertões! Hehe. E vamos trabalhar muito sim! Forte abraço e até mais!

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