domingo, 1 de setembro de 2013

PARA ONDE APONTA A ESTRELA? UMA MENSAGEM DE NATAL


Para onde aponta a estrela? Uma mensagem de Natal
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro


Todo ano é mais ou menos assim: quando chega o período chamado natal, uma angústia indignada parece povoar meu coração e minha alma. Como ser humano, igual a todo ser humano, tenho minhas contradições, lutas externas e internas para me manter firme naquilo que compreendo ser fundamental na vida, como a solidariedade com as pessoas injustiçadas e a defesa de um planeta sustentável, também detentor de direitos, mas, não posso negar minha indignação com as contradições que se acentuam no tempo de natal.
Depois de meditar, resolvi escrever uma mensagem de natal que é mais uma espera por um verdadeiro natal contra o capitalismo, o mercado do lucro e do consumo desenfreado que tem se apropriado do natal, como se apropriou da força de trabalho dos trabalhadores, como vem se apropriando da religião e de tantos valores da humanidade e, sobretudo, das pessoas.
Percebi que minha angústia começou se acentuar desde o mês de outubro quando atravessava, de ônibus ou a pé o Centro de Belo Horizonte. Já se percebia neste período, acentuadamente, a mudança no comércio, as propagandas, os enfeites e o investimento na iluminação das ruas, as chamadas para a compra de presentes e confraternizações de Natal. Junto a isto as notícias sobre a expectativa de vendas para o natal e todo um investimento nas mais variadas áreas de vendas. Cada dia, de outubro até dezembro, aumentava-se o número de pessoas e de automóveis e nas últimas semanas tornou-se quase que inviável caminhar pelas calçadas no centro da cidade.
As pessoas pareciam desesperadas. Não se viam e nem se olhavam. O foco estava nas lojas, nos presentes, nas compras e andavam carregadas de sacolas e dívidas, conseqüentemente. Chamou-me atenção a quantidade de crianças acompanhando os adultos nesta aventura desenfreada de consumo em um aprendizado completo, como quem se alfabetizava para a manutenção do empoderamento do deus mercado.
A princípio, como militante cristã que tenta vivenciar os princípios da Teologia da Libertação, havia pensado em escrever uma mensagem de natal revelando, como em minha luta no dia a dia, tenho experimentado o natal, como tenho visto nascer a vida, a esperança, o que posso chamar de divino nas experiências humanas. Depois de meditar nestes últimos dias e vivenciar esta profunda angústia indignada, ao entrar nas filas da vida, resolvi expressar, nesta mensagem de natal, onde o divino precisa nascer, onde talvez ainda não seja natal, onde se faz urgente conclamar o olhar solidário das pessoas. Quem dera se o olhar de toda a gente ao invés de se fixar nas vitrines, nas lojas, no consumo, se fixasse nestes lugares, os beléns, as manjedouras, os presépios de nossos dias, que aguardam a chegada do natal, embora estes lugares sejam permeados do divino. Quem dera este olhares viessem de forma organizada, na superação de toda forma de individualismo e transformado em lutas coletivas por justiça social.
Tenho convivido com as pessoas em situação de rua e as pessoas catadoras de material reciclável que conclamam por direito na sua forma mais fundamental que é o direito a vida com respeito e dignidade. No Brasil, dentro de um ano e poucos meses mais de 300 pessoas em situação de rua foram assassinadas de maneiras mais cruéis possíveis, inclusive tendo seus corpos queimados. Também com relação às pessoas em situação de rua, apesar de uma política nacional instituída, muitos estados e municípios não garantem os direitos destas pessoas. Falta uma política de moradia digna na maioria das cidades brasileiras que contemple esta população. Os equipamentos de acolhimento, em sua maioria, estão superlotados e utilizam de uma metodologia que dificulta a emancipação destas pessoas. O preconceito e a discriminação impedem de ver nestas pessoas o José, a Maria, a Tereza que se encontram nas ruas, que tem uma história de vida, que tem dignidade e tem direitos como qualquer outro ser humano.
As pessoas em situação de rua não querem ser “acolhidas” com internação compulsória, forçadas a tratamentos mascarados de saúde, mas que são de controle e higienista, de limpeza social. Estas pessoas parecem adormecidas, mas também estão organizadas e sabem de seus direitos. Em sua maioria são pessoas livres e detentoras de muitas experiências e conhecimentos. Esperam por um olhar solidário, uma oportunidade que de fato esteja na ótica dos direitos fundamentais como moradia, saúde, trabalho, vida em comunidade, respeito e liberdade.
            No encontro com as pessoas catadoras de material reciclável vejo a resistência e a valentia de um grupo de trabalhadores e trabalhadoras que encontraram no que a sociedade chama de lixo e descarta, uma alternativa de trabalho. Estas pessoas também prestam um serviço público limpando a cidade e dando ao lixo um destino sustentável, gerando trabalho, inclusão social e diminuição da poluição.
   A história da catação no Brasil e no mundo, realizada por esta categoria de trabalhadores, é remota. Eles e elas precederam a qualquer iniciativa política nesta área e de maneira autônoma e organizada mantiveram-se firmes e resistentes nesta luta. São pessoas que ainda acreditam no sistema de trabalho associativo e em cooperativas, onde os valores da solidariedade, da ética e da justiça social não são eliminados, como os são na lógica do mercado capitalista.
Contudo, o crescimento da indústria da reciclagem, como uma área rentável na economia, tem feito com que o trabalho dos catadores fique cada vez mais ameaçado pela especulação do lucro das grandes empresas, inclusive as internacionais que atuam nesta área.
No Brasil, atualmente, cresce uma onda de programas dos governos de Estados, através de processo licitatório na modalidade Parceria Público Privada, PPP, para destino final dos resíduos sólidos.
Nestes programas de governos, além da violação a história milenar de trabalho dos catadores de material reciclável, sem nenhum reconhecimento pelo serviço prestado a toda sociedade, sem garantia do direito ao trabalho digno e sem o reconhecimento e valorização das organizações de catadores como meios alternativos de trabalhos, com forte índice de inclusão social, existe a grande possibilidade de queima do lixo por meio da tecnologia da incineração.
Estudos apontam que a incineração do lixo é altamente prejudicial a saúde pública e ao meio ambiente e a legislação brasileira e internacional de que o Brasil é signatário não permite este tipo de tecnologia. Mas, manobras jurídicas e políticas estão sendo feitas e avançando cada vez mais em Estados como Minas Gerais, Brasília, etc., enquanto o povo, adormecido, contempla as luzes de natal, abastecem o ego com as compras, o consumo e as “confraternizações” e alimenta expectativas para a copa do mundo em 2014.  Este grupo de trabalhadores e trabalhadoras, denominado catadores de materiais recicláveis, como a estrela que guiou os magos até o presépio, está apontando para onde está a vida dizendo não a incineração e a coleta de lixo mecanizada e dizendo sim para a reciclagem, a compostagem e a coleta seletiva solidária do lixo. Reciclagem com o reconhecimento do trabalho dos catadores, garantindo-lhes dignidade e o fortalecimento de suas organizações como associações e cooperativas. Seguir a intuição dos catadores contra a incineração dos resíduos sólidos será seguir a estrela que guiou os magos até o presépio onde estava o menino Jesus. Este grupo de trabalhadores está alertando para a chegada de Herodes que pode vir também com o nome de incineração e exclusão da milenar classe trabalhadora de catadores de material reciclável, assim como o aumento da poluição e o aumento de doenças das pessoas.
Também não poderia deixar de falar da luta das comunidades de resistência que reivindicam a moradia digna. Em Belo Horizonte, Dandara, Camilo Torres, Irmã Dorothy, Eliana Silva e Zilah Spósito/Helena Greco também sinalizam como a estrela guia do oriente. Tenho visitado e participado da vida destas comunidades e tenho sido testemunha da força e da resistência deste povo que optou por caminhos alternativos por causa da inexistência de uma política pública eficiente de moradia para as pessoas que possuem rendas inferiores a três salários mínimos.
Como o mercado do lixo que ameaça os trabalhadores da reciclagem, o mercado imobiliário não prioriza as famílias que recebem de zero a três salários mínimos. E quem vive com esta renda, tendo que pagar aluguel, encontra a saída em se juntar, se organizar, ocupar os latifúndios abandonados (sem cumprir a função social) e construir moradia, comunidades e pessoas emancipadas.
Fico indignada porque nestas comunidades, considerada pelo poder público como irregulares, são negados às centenas de famílias, crianças, mulheres e idosos, água e luz. Em nenhuma delas, em Belo Horizonte, apesar das tentativas, foram instalados estes serviços. Vários já foram os casos de acidentes com energia porque as pessoas se vêem obrigadas a, clandestinamente, instalarem os serviços. Sabem que tem o direito garantido na Constituição brasileira, que esta não impõe limites, mas que por uma vontade (ou falta de vontade) política este direito é negado, mesmo que estas pessoas solicitem e estejam dispostas a, como qualquer outra pessoa, contribuírem com o serviço prestado. Da mesma maneira é dificultado o direito a saúde e a educação.
Experimento também a necessidade de se fazer natal nas filas do Sistema Único de Saúde – SUS. Por não possuir plano de saúde, outro dia, com uma forte infecção urinária, fui ao posto de saúde próximo ao lugar onde moro e a atendente perguntou meu endereço. Ao responder, era uma segunda feira, ela me disse que não era o meu dia e que eu tinha que retornar na quinta-feira. Indignada, perguntei se havia médico e ela me disse que sim. Então me sentei e disse que só sairia dali depois que o médico me atendesse. Esta não era a primeira vez que havia sido recebido assim e tinha notícias, por meio das famílias e pessoas que convivo de que esta é a regra.
Tenho conversado com as pessoas que utilizam o SUS e tenho escutado o clamor desta gente. Também não dá para entender como que os postos de saúde não funcionam nos finais de semana e feriados em Belo Horizonte. É como se as pessoas tivessem que organizar também o dia de ficar doente. Durante a semana tem os dias marcados e nos finais de semana e feriados nem pensar. Conheço pessoas que estão há anos aguardando uma cirurgia ou um exame. Outro dia, uma amiga que estava muito doente no interior, tinha que vim urgentemente para Belo Horizonte porque onde estava não podia fazer os exames, precisou entrar na justiça e só mediante uma liminar judicial, conseguiu um vaga em um hospital que lhe atendeu.
Quem passa pela chamada área hospitalar em Belo Horizonte também pode ver o clamor. Dezenas de pessoas que vem dos interiores porque não existe um investimento em saúde nos municípios. As prefeituras, ao invés de garantirem uma boa política de saúde local, pagam transportes para trazer as pessoas para Belo Horizonte. Na maioria são pessoas que estão fazendo quimioterapia ou radioterapia, transfusão de sangue, consultas, etc. Vem e ficam na espera, seja no hospital ou na rua. São muitas as pessoas que ficam na área hospitalar, na rua (quem não tem parentes em Belo Horizonte) aguardando a hora do retorno para sua cidade. Imagine você, doente, tendo que se submeter a cansativas viagens e esperas quando poderia ser atendido em sua própria cidade e ter, ali mesmo, o direito garantido de cuidar da saúde.
Outro Natal que precisa chegar é o respeito com as pessoas que utilizam o transporte público. Não agüento mais ler no Jornal do Ônibus que é fixado nos transportes coletivos de Belo Horizonte, um quadro que se chama “Gentileza Urbana”. Outro dia estava escrito mais ou menos o seguinte: “gentileza urbana é não sentar nos degraus, atrapalhando a subida ou descida dos demais passageiros”. Perguntei para mim em silêncio: será que alguém se perguntou por que as pessoas sentam nos degraus? Pensei em sugerir o seguinte: “gentileza urbana é ter transporte coletivo suficiente e de qualidade para que todas as pessoas viajem sentadas, inclusive com o sinto de segurança e a cadeirinha para crianças tão exigidas nos transportes privados. Por que os pobres ou os que andam a pé e de ônibus podem viajam “sem segurança”? As crianças podem ir penduradas nos ônibus, passarem se arrastando por debaixo da roleta, assim como as mulheres grávidas, os idosos, o povo cansado depois de um dia inteiro de trabalho duro, em pé e se aprumando entre as arrancadas, freadas e paradas? A segurança exigida nos transportes privados em nome da proteção a vida não vale para as pessoas que andam nos transportes públicos?
Só quem experimenta esperar pelos ônibus em Belo Horizonte, acredito que em outros lugares não deve ser diferente, sabe o quando é duro e desumano depender do transporte coletivo. Tenho esperado ônibus, por exemplo, na Avenida Antônio Carlos, onde recentemente foi feita uma mega obra de duplicação. Alguém já viu como está o povo que espera por ônibus na Avenida Antônio Carlos? O povo está comprimido em lugares apertados entre carros e poeira, em um sol escaldante e numa espera que dificilmente é menor que cinqüenta minutos. Depois de muito tempo, a prefeitura colocou uma cobertura e um “banco” para as pessoas sentarem. A sombra da cobertura ora cai no meio da pista onde passam os carros, ora cai no meio da pista onde passam os ônibus, nunca cai sobre as pessoas. Quanto aos bancos, cabem umas quatro pessoas, mas colocaram em uma altura tal que são poucas as pessoas que conseguem sentar. Além disso, o risco de acidentes é muito grande nestes pontos, sobretudo nos horários de pico.
Como advogada popular, militante dos direitos humanos, não poderia deixar de falar também da necessidade de se fazer natal no poder judiciário. As lutas do povo injustiçado do campo e da cidade dificilmente, quando se recorre ao poder judiciário, são vistas como reivindicações justas. Em minas Gerais, nos últimos dias, eram mais de quinze liminares de reintegração de posse expedidas contra centenas de famílias que insistem em permanecer no campo, produzir alimentos sem agrotóxicos e lutar por Reforma Agrária. De igual maneira são criminalizados os defensores de direitos humanos e os militantes dos movimentos sociais e populares. São muitos os que estão ameaçados de morte e de prisão e os que foram presos nos últimos meses. Torna-se urgente fazer natal nas fileiras do povo organizado que reivindica o sagrado direito de manifestação.
Por fim, esta sociedade que tem olhos abertos para as luzes do natal, para as vitrines, o comércio e o consumo parece se tornado cega diante dos clamores das pessoas injustiçadas e do meio ambiente. Nesta mensagem de natal, desejo, de coração, que possamos retirar o olhar da vitrine, do consumo, dos presentes e confraternizações particulares e construirmos olhares coletivos para o que de fato é natal: vida com dignidade para todas as pessoas; justiça social; respeito e reconhecimento de que em cada pessoa humana existe uma parte do divino. Não bastam casas, ruas, praças e cidades iluminadas. É preciso seguir a estrela guia apontada pelo povo que sofre toda forma de injustiça e esta estrela aponta para a chegada de uma nova vida que supõe luta coletiva, ternura, solidariedade, resistência e emancipação popular.
Belo Horizonte, 25 de dezembro de 2012.





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