Aliança
de Deus com o povo da Ocupação Dandara
No
terceiro dia, surgiu um arco-íris sobre a Ocupação Dandara.
Na noite de
sábado, dia 13 de março de 2010, quando eu começava a dormir, acordei com o
telefone tocando e do outro lado um clamor de desespero: era uma das
coordenadoras da Ocupação Dandara (no Céu Azul, região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte , MG)
me chamando para ir até à Ocupação o mais rápido possível, pois havia
acontecido um incêndio em um barraco e duas crianças haviam morrido.
Ao chegar ao
local, encontrei-me com o Grupo de 18 coordenadores e coordenadoras prestando
apoio às famílias, numa profunda atitude de solidariedade. Era grande a
sintonia entre eles e elas, o cuidado de uns para com os outros, a luta por se
manterem fortes, diante de tanta dor, a fim de poderem ser ajuda e apoio não só
à família das duas crianças, mas a todo o povo da Ocupação que se encontrava em
profundo estado de choque.
Ficamos por
ali, como o grupo de mulheres ao pé da cruz de Jesus. Diz o evangelho: “A mãe de Jesus, a irmã da mãe dele, Maria de
Cléofas, e Maria Madalena estavam junto à cruz.” (João 19,25). Quando foram
retirados os corpos carbonizados de Estefânia Carolina e Beatriz Tamires - as
duas crianças irmãs, de 6 e 8 anos, respectivamente, que haviam morrido - do
meio das cinzas do barraco (de 2 X 3 metros ) pelos homens da perícia e pelos
bombeiros, levantamos nossos braços para o céu e com lágrimas, indignação,
esperança e muita dor, clamamos, de mãos dadas, ao nosso Deus, através da
oração do Pai Nosso: Que venha a nós o
vosso Reino... O Deus a quem clamávamos era o Pai/Mãe nosso/a dos pobres e
marginalizados, dos mártires e dos torturados, dos sem-teto e dos sem-terra, o
Deus companheiro que acampa com os pobres (cf. Ap 21,3-4)[3] e
visita carinhosamente todas as famílias em todos os barracos, conhece a dor, a
esperança e a alegria do povo marginalizado (cf. Ex 3,7-9)[4].
Pedimos que
viesse o Reino de Deus que tem nome de Justiça, de casa para morar, terra para
plantar, saúde, educação, comida, água, lazer, liberdade e dignidade, para todos
e não só para alguns. Um Reino que é de Deus, porque é do povo que está
caminhando de cabeça erguida, na luta contra toda repressão, opressão,
discriminação e tantas formas de exclusão.
Quando os
corpos desfigurados seguiram com a polícia para o Instituto Médico Legal e a mamãe
das crianças, Vera Lúcia, foi levada presa pelos policiais; permanecemos por
ali acompanhando um silêncio profundo que ia se fazendo, naquela madrugada de
domingo, na Ocupação Dandara. A indignação tomou conta de todos, porque nos lembrávamos
da luta das famílias para construir as casas de alvenaria e sair dos barracos
de lona-preta e todas as dificuldades impostas pela polícia, que, de forma
ilegal e arbitrária, dificulta a construção das casas, ao proibir a entrada de
materiais de construção sem considerar a legitimidade desta luta, pois a Construtora
Modelo, que se apresentou como proprietária, há 40 anos, deixou o terreno
abandonado, sem cumprir a função social e isto, liminarmente, foi reconhecido
pela Corte Superior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que deu, sem nenhuma
restrição, o direito da posse ao povo de Dandara.
Quando “tudo
silenciou”, retornei para minha casa, a fim de descansar um pouco e retornar no
dia seguinte. No caminho, de volta para casa, interroguei-me profundamente
sobre o sentido da luta. Apoiar, ajudar, fortalecer a esperança dos pobres na
luta, para conquistar direitos humanos e sociais? Por que e para que tanta dor?
Assim como o profeta Elias, fugindo da perseguição do Rei Acab, por estar na
luta contra a idolatria (I Reis 19,4-5)[5],
eu estava profundamente desolada, mas sabia que tudo que sentia era muito
pequeno diante da dor da mãe, a sra. Vera Lúcia, do pai, o sr. Reginaldo e da
família das duas crianças inocentes, que morreram carbonizadas, enquanto
dormiam num colchonete, no chão de um pequeno barraco. Estefânia adorava viver em Dandara. Ficava
feliz quando a mãe dizia: hoje vamos para a Dandara. Na última tarde em que
viveu, Estefânia disse: “Mamãe, se Deus
quiser, nós estamos quase conseguindo nossa casinha para vivermos em paz.”
No domingo,
dia 14, bem cedo, um telefonema de frei Gilvander, companheiro na luta, como
quem traz o pão da resistência, acordou-me e me coloquei de pé, de volta à
Dandara. Por lá passamos todo o dia. Começamos pela manhã com um momento orante,
através da parábola do Pai Misericordioso (Lucas 15,1-2.11-32). Este Evangelho
reforçou nossa indignação, diante do tratamento dado pela polícia e pelos Meios
de Comunicação à mãe das duas crianças que morreram. Como pode uma mãe de
quatro filhos, sem casa para morar, depois de perder duas filhas carbonizadas,
ser levada à prisão e, presa, ficar algemada da meia-noite ao meio-dia, até ser
empurrada para dentro de uma pequena cela no CERESP, de Belo Horizonte, onde já
havia outras 21 mulheres? Por que o Estado brasileiro insiste em tratar os
pobres como “caso de polícia”? Por que a mídia, sem nenhum processo prévio,
acusa e criminaliza as pessoas, multiplicando suas dores e induzindo a opinião
pública, para não perceber as causas mais profundas que levaram à tragédia? “A
mãe foi a culpada!”, bradou a mídia aos quatro ventos. Assim, arrumava um bode
expiatório, que criava uma cortina de fumaça impedindo
ver as causas profundas do acontecido.
Acompanhamos,
todo o dia do domingo, a presença da “mídia sem compaixão”, como destacou um
companheiro, que parecia apenas direcionar-se ao local do fato e colher relatos
para o seu “comércio de notícias”, sem ver tantas pessoas indignadas e
sofridas, sem enxergar toda a problemática social, que estava em torno do fato,
que eles filmavam e fotografavam.
Ao final
daquela tarde de domingo, convocamos a Ocupação para uma Assembléia Geral
extraordinária e fizemos a leitura da Nota das Brigadas Populares à imprensa e
à sociedade, escrita por pessoas que, profundamente sofridas, estavam vendo o
ocorrido dentro do seu contexto. A nota se intitulava “Beatriz e Estefânia,
duas crianças da Ocupação Dandara, mártires da luta contra a injustiça social”.
Em sintonia com as irmãs de Lázaro (na Bíblia, João 11) que disseram a Jesus
quando da morte de seu irmão: “Senhor, se
estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”, também nós acreditamos que,
se a justiça social tivesse chegado antes à Dandara, certamente esta tragédia
não teria acontecido.
Nossa
indignação e nossa dor eram tão grandes, que o espaço da Ocupação parecia não
nos caber. Então, fomos para a rua, interditamos o trânsito e gritamos por
justiça e pelo direito à moradia. Chega de tanta repressão e violência!
Contudo, a polícia militar, sempre de plantão, chegou com truculência e nos fez
recuar. Recuamos! Mas não desistimos da luta!
No terceiro
dia, na segunda-feira, dia 15 de março, voltamos à Dandara, no final do tarde.
O grupo de coordenadores/as nos esperava, para fazermos uma roda de estudo e
análise das notícias sobre o fato ocorrido e que, naquele dia, circularam pelos
jornais. Havia chovido muito na região da Pampulha. Eram 17h15, quando chegamos
à Ocupação. Na entrada, havia um profundo silêncio. Na porta do barracão, brincavam
a Brenda, o Juan e o Felter, filhos de três coordenadoras. Eles gritaram
alegres nossos nomes, anunciando nossa chegada, mas estávamos extasiados, envolvidos
por um profundo silêncio, que gritava e sussurrava dentro de nós ....
É que sobre a
Dandara, de uma ponta a outra da Ocupação, um Arco-íris havia surgido!
Veio-nos à mente e ao coração a lembrança de
que era o terceiro dia, em
que Estefânia e Beatriz haviam partido de Dandara.
Lembramo-nos da passagem bíblica de Gênesis 9,13-14.16,
em que Deus faz aliança com seu povo e o arco-íris é o sinal desta aliança! Não
tivemos dúvida! Para nós, tudo se confirmou! Estas duas crianças, mártires da
luta contra a injustiça social, através de seu sangue derramado, no chão de
Dandara, reafirmam esta aliança de Deus com a vida do povo de Dandara e com
tantas Dandaras da vida. Foi no terceiro dia, que Jesus ressuscitou. Foi no
terceiro dia que Abraão, após caminhar três dias, refez sua experiência de Deus
e ouviu a voz de um anjo: “Não estenda a mão contra o menino! Não lhe faça
nenhum mal.” (Gênesis 22,12).
Como quem experimentou a ressurreição de Jesus, esta
experiência nos pediu para não calarmos. Pediu-nos para anunciá-la, porque, no
terceiro dia, um arco-íris sobre Dandara confirmou a grande certeza, de que Deus
renovou sua aliança e seu compromisso, com a luta justa e sublime do povo
sem-casa e sem-terra da Ocupação Dandara. No terceiro dia, um arco-íris surgiu
sobre Dandara! Nós vimos! Mas quando anunciamos que vimos, muitas pessoas nos
disseram que também viram, não apenas o arco-íris, mas Deus nos visitando! Não
somente vimos, mas acreditamos: Deus renovou sua aliança com a luta de Dandara!
Nenhuma autoridade tem mais moral para autorizar a polícia a expulsar o povo de
lá. Deus decretou: a terra de Dandara é para usufruto das 887 famílias que a
ocupam, há quase um ano. Beatriz e Estefânia vivem em nós! Com o sangue de duas
crianças, a terra e a luta de Dandara se tornaram mais sagradas. Olha a glória
de Deus brilhando entre nós! Quem puder entender, entenda.
Belo Horizonte, 21 de março de
2010.
[1] Advogada Popular. mrosariodeoliveira@gmail.com.
[2]
Frei e padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica ; professor de Teologia Bíblica do
Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA -, em Belo Horizonte, MG; assessor da
CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br e www.gilvander.org.br
[3]
“Nisso, saiu do trono uma voz forte. E ouvi: “Esta é a tenda de Deus com os
homens. Ele vai morar com eles. Eles serão o seu povo e ele, o Deus-com-eles,
será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais
haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Sim! As coisas antigas
desapareceram!””
[4]
“Javé disse: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o
seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso,
desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra
para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território
dos cananeus, heteus ... O clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e eu
estou vendo a opressão com que os egípcios os atormentam.”
[5] “O
profeta Elias continuou a caminhar mais um dia pelo deserto. Por fim, sentou-se
debaixo de uma árvore e desejou a morte, dizendo: “Chega, Javé! Tira a minha
vida, porque eu não sou melhor que meus pais”. Deitou-se debaixo da árvore e
dormiu. Então um anjo o tocou e lhe disse: “Levante-se e coma”.
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