Para
onde aponta a estrela? Uma mensagem de Natal
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
Todo ano é
mais ou menos assim: quando chega o período chamado natal, uma angústia
indignada parece povoar meu coração e minha alma. Como ser humano, igual a todo
ser humano, tenho minhas contradições, lutas externas e internas para me manter
firme naquilo que compreendo ser fundamental na vida, como a solidariedade com
as pessoas injustiçadas e a defesa de um planeta sustentável, também detentor
de direitos, mas, não posso negar minha indignação com as contradições que se
acentuam no tempo de natal.
Depois de meditar,
resolvi escrever uma mensagem de natal que é mais uma espera por um verdadeiro
natal contra o capitalismo, o mercado do lucro e do consumo desenfreado que tem
se apropriado do natal, como se apropriou da força de trabalho dos
trabalhadores, como vem se apropriando da religião e de tantos valores da
humanidade e, sobretudo, das pessoas.
Percebi que
minha angústia começou se acentuar desde o mês de outubro quando atravessava,
de ônibus ou a pé o Centro de Belo Horizonte. Já se percebia neste período, acentuadamente,
a mudança no comércio, as propagandas, os enfeites e o investimento na
iluminação das ruas, as chamadas para a compra de presentes e confraternizações
de Natal. Junto a isto as notícias sobre a expectativa de vendas para o natal e
todo um investimento nas mais variadas áreas de vendas. Cada dia, de outubro
até dezembro, aumentava-se o número de pessoas e de automóveis e nas últimas
semanas tornou-se quase que inviável caminhar pelas calçadas no centro da
cidade.
As pessoas
pareciam desesperadas. Não se viam e nem se olhavam. O foco estava nas lojas,
nos presentes, nas compras e andavam carregadas de sacolas e dívidas,
conseqüentemente. Chamou-me atenção a quantidade de crianças acompanhando os
adultos nesta aventura desenfreada de consumo em um aprendizado completo, como
quem se alfabetizava para a manutenção do empoderamento do deus mercado.
A princípio,
como militante cristã que tenta vivenciar os princípios da Teologia da
Libertação, havia pensado em escrever uma mensagem de natal revelando, como em
minha luta no dia a dia, tenho experimentado o natal, como tenho visto nascer a
vida, a esperança, o que posso chamar de divino nas experiências humanas.
Depois de meditar nestes últimos dias e vivenciar esta profunda angústia indignada,
ao entrar nas filas da vida, resolvi expressar, nesta mensagem de natal, onde o
divino precisa nascer, onde talvez ainda não seja natal, onde se faz urgente
conclamar o olhar solidário das pessoas. Quem dera se o olhar de toda a gente
ao invés de se fixar nas vitrines, nas lojas, no consumo, se fixasse nestes
lugares, os beléns, as manjedouras, os presépios de nossos dias, que aguardam a
chegada do natal, embora estes lugares sejam permeados do divino. Quem dera
este olhares viessem de forma organizada, na superação de toda forma de
individualismo e transformado em lutas coletivas por justiça social.
Tenho
convivido com as pessoas em situação de rua e as pessoas catadoras de material
reciclável que conclamam por direito na sua forma mais fundamental que é o
direito a vida com respeito e dignidade. No Brasil, dentro de um ano e poucos
meses mais de 300 pessoas em situação de rua foram assassinadas de maneiras
mais cruéis possíveis, inclusive tendo seus corpos queimados. Também com
relação às pessoas em situação de rua, apesar de uma política nacional
instituída, muitos estados e municípios não garantem os direitos destas
pessoas. Falta uma política de moradia digna na maioria das cidades brasileiras
que contemple esta população. Os equipamentos de acolhimento, em sua maioria,
estão superlotados e utilizam de uma metodologia que dificulta a emancipação
destas pessoas. O preconceito e a discriminação impedem de ver nestas pessoas o
José, a Maria, a Tereza que se encontram nas ruas, que tem uma história de
vida, que tem dignidade e tem direitos como qualquer outro ser humano.
As pessoas em
situação de rua não querem ser “acolhidas” com internação compulsória, forçadas
a tratamentos mascarados de saúde, mas que são de controle e higienista, de
limpeza social. Estas pessoas parecem adormecidas, mas também estão organizadas
e sabem de seus direitos. Em sua maioria são pessoas livres e detentoras de
muitas experiências e conhecimentos. Esperam por um olhar solidário, uma
oportunidade que de fato esteja na ótica dos direitos fundamentais como
moradia, saúde, trabalho, vida em comunidade, respeito e liberdade.
No
encontro com as pessoas catadoras de material reciclável vejo a resistência e a
valentia de um grupo de trabalhadores e trabalhadoras que encontraram no que a
sociedade chama de lixo e descarta, uma alternativa de trabalho. Estas pessoas
também prestam um serviço público limpando a cidade e dando ao lixo um destino
sustentável, gerando trabalho, inclusão social e diminuição da poluição.
A história da catação no Brasil e no mundo,
realizada por esta categoria de trabalhadores, é remota. Eles e elas precederam
a qualquer iniciativa política nesta área e de maneira autônoma e organizada
mantiveram-se firmes e resistentes nesta luta. São pessoas que ainda acreditam
no sistema de trabalho associativo e em cooperativas, onde os valores da
solidariedade, da ética e da justiça social não são eliminados, como os são na
lógica do mercado capitalista.
Contudo, o
crescimento da indústria da reciclagem, como uma área rentável na economia, tem
feito com que o trabalho dos catadores fique cada vez mais ameaçado pela
especulação do lucro das grandes empresas, inclusive as internacionais que atuam
nesta área.
No Brasil,
atualmente, cresce uma onda de programas dos governos de Estados, através de
processo licitatório na modalidade Parceria Público Privada, PPP, para destino
final dos resíduos sólidos.
Nestes
programas de governos, além da violação a história milenar de trabalho dos
catadores de material reciclável, sem nenhum reconhecimento pelo serviço
prestado a toda sociedade, sem garantia do direito ao trabalho digno e sem o
reconhecimento e valorização das organizações de catadores como meios
alternativos de trabalhos, com forte índice de inclusão social, existe a grande
possibilidade de queima do lixo por meio da tecnologia da incineração.
Estudos
apontam que a incineração do lixo é altamente prejudicial a saúde pública e ao
meio ambiente e a legislação brasileira e internacional de que o Brasil é
signatário não permite este tipo de tecnologia. Mas, manobras jurídicas e
políticas estão sendo feitas e avançando cada vez mais em Estados como Minas
Gerais, Brasília, etc., enquanto o povo, adormecido, contempla as luzes de
natal, abastecem o ego com as compras, o consumo e as “confraternizações” e
alimenta expectativas para a copa do mundo em 2014. Este grupo de trabalhadores e trabalhadoras,
denominado catadores de materiais recicláveis, como a estrela que guiou os
magos até o presépio, está apontando para onde está a vida dizendo não a
incineração e a coleta de lixo mecanizada e dizendo sim para a reciclagem, a
compostagem e a coleta seletiva solidária do lixo. Reciclagem com o
reconhecimento do trabalho dos catadores, garantindo-lhes dignidade e o
fortalecimento de suas organizações como associações e cooperativas. Seguir a
intuição dos catadores contra a incineração dos resíduos sólidos será seguir a
estrela que guiou os magos até o presépio onde estava o menino Jesus. Este
grupo de trabalhadores está alertando para a chegada de Herodes que pode vir
também com o nome de incineração e exclusão da milenar classe trabalhadora de
catadores de material reciclável, assim como o aumento da poluição e o aumento
de doenças das pessoas.
Também não
poderia deixar de falar da luta das comunidades de resistência que reivindicam
a moradia digna. Em
Belo Horizonte , Dandara, Camilo Torres, Irmã Dorothy, Eliana
Silva e Zilah Spósito/Helena Greco também sinalizam como a estrela guia do oriente.
Tenho visitado e participado da vida destas comunidades e tenho sido testemunha
da força e da resistência deste povo que optou por caminhos alternativos por
causa da inexistência de uma política pública eficiente de moradia para as
pessoas que possuem rendas inferiores a três salários mínimos.
Como o mercado
do lixo que ameaça os trabalhadores da reciclagem, o mercado imobiliário não
prioriza as famílias que recebem de zero a três salários mínimos. E quem vive
com esta renda, tendo que pagar aluguel, encontra a saída em se juntar, se
organizar, ocupar os latifúndios abandonados (sem cumprir a função social) e
construir moradia, comunidades e pessoas emancipadas.
Fico indignada
porque nestas comunidades, considerada pelo poder público como irregulares, são
negados às centenas de famílias, crianças, mulheres e idosos, água e luz. Em
nenhuma delas, em Belo
Horizonte , apesar das tentativas, foram instalados estes
serviços. Vários já foram os casos de acidentes com energia porque as pessoas
se vêem obrigadas a, clandestinamente, instalarem os serviços. Sabem que tem o
direito garantido na Constituição brasileira, que esta não impõe limites, mas
que por uma vontade (ou falta de vontade) política este direito é negado, mesmo
que estas pessoas solicitem e estejam dispostas a, como qualquer outra pessoa,
contribuírem com o serviço prestado. Da mesma maneira é dificultado o direito a
saúde e a educação.
Experimento
também a necessidade de se fazer natal nas filas do Sistema Único de Saúde –
SUS. Por não possuir plano de saúde, outro dia, com uma forte infecção
urinária, fui ao posto de saúde próximo ao lugar onde moro e a atendente
perguntou meu endereço. Ao responder, era uma segunda feira, ela me disse que
não era o meu dia e que eu tinha que retornar na quinta-feira. Indignada,
perguntei se havia médico e ela me disse que sim. Então me sentei e disse que
só sairia dali depois que o médico me atendesse. Esta não era a primeira vez
que havia sido recebido assim e tinha notícias, por meio das famílias e pessoas
que convivo de que esta é a regra.
Tenho
conversado com as pessoas que utilizam o SUS e tenho escutado o clamor desta
gente. Também não dá para entender como que os postos de saúde não funcionam
nos finais de semana e feriados em Belo Horizonte. É como se as pessoas tivessem que
organizar também o dia de ficar doente. Durante a semana tem os dias marcados e
nos finais de semana e feriados nem pensar. Conheço pessoas que estão há anos
aguardando uma cirurgia ou um exame. Outro dia, uma amiga que estava muito
doente no interior, tinha que vim urgentemente para Belo Horizonte porque onde
estava não podia fazer os exames, precisou entrar na justiça e só mediante uma
liminar judicial, conseguiu um vaga em um hospital que lhe atendeu.
Quem passa
pela chamada área hospitalar em Belo Horizonte também pode ver o clamor. Dezenas
de pessoas que vem dos interiores porque não existe um investimento em saúde
nos municípios. As prefeituras, ao invés de garantirem uma boa política de
saúde local, pagam transportes para trazer as pessoas para Belo Horizonte. Na
maioria são pessoas que estão fazendo quimioterapia ou radioterapia, transfusão
de sangue, consultas, etc. Vem e ficam na espera, seja no hospital ou na rua.
São muitas as pessoas que ficam na área hospitalar, na rua (quem não tem
parentes em Belo
Horizonte ) aguardando a hora do retorno para sua cidade.
Imagine você, doente, tendo que se submeter a cansativas viagens e esperas
quando poderia ser atendido em sua própria cidade e ter, ali mesmo, o direito garantido
de cuidar da saúde.
Outro Natal
que precisa chegar é o respeito com as pessoas que utilizam o transporte
público. Não agüento mais ler no Jornal do Ônibus que é fixado nos transportes
coletivos de Belo Horizonte, um quadro que se chama “Gentileza Urbana”. Outro
dia estava escrito mais ou menos o seguinte: “gentileza urbana é não sentar nos
degraus, atrapalhando a subida ou descida dos demais passageiros”. Perguntei
para mim em silêncio: será que alguém se perguntou por que as pessoas sentam nos
degraus? Pensei em sugerir o seguinte: “gentileza urbana é ter transporte
coletivo suficiente e de qualidade para que todas as pessoas viajem sentadas,
inclusive com o sinto de segurança e a cadeirinha para crianças tão exigidas
nos transportes privados. Por que os pobres ou os que andam a pé e de ônibus
podem viajam “sem segurança”? As crianças podem ir penduradas nos ônibus,
passarem se arrastando por debaixo da roleta, assim como as mulheres grávidas,
os idosos, o povo cansado depois de um dia inteiro de trabalho duro, em pé e se
aprumando entre as arrancadas, freadas e paradas? A segurança exigida nos
transportes privados em nome da proteção a vida não vale para as pessoas que
andam nos transportes públicos?
Só quem
experimenta esperar pelos ônibus em Belo Horizonte , acredito que em outros lugares
não deve ser diferente, sabe o quando é duro e desumano depender do transporte
coletivo. Tenho esperado ônibus, por exemplo, na Avenida Antônio Carlos, onde
recentemente foi feita uma mega obra de duplicação. Alguém já viu como está o
povo que espera por ônibus na Avenida Antônio Carlos? O povo está comprimido em
lugares apertados entre carros e poeira, em um sol escaldante e numa espera que
dificilmente é menor que cinqüenta minutos. Depois de muito tempo, a prefeitura
colocou uma cobertura e um “banco” para as pessoas sentarem. A sombra da
cobertura ora cai no meio da pista onde passam os carros, ora cai no meio da
pista onde passam os ônibus, nunca cai sobre as pessoas. Quanto aos bancos,
cabem umas quatro pessoas, mas colocaram em uma altura tal que são poucas as
pessoas que conseguem sentar. Além disso, o risco de acidentes é muito grande
nestes pontos, sobretudo nos horários de pico.
Como advogada
popular, militante dos direitos humanos, não poderia deixar de falar também da
necessidade de se fazer natal no poder judiciário. As lutas do povo injustiçado
do campo e da cidade dificilmente, quando se recorre ao poder judiciário, são
vistas como reivindicações justas. Em minas Gerais , nos últimos dias, eram mais de
quinze liminares de reintegração de posse expedidas contra centenas de famílias
que insistem em permanecer no campo, produzir alimentos sem agrotóxicos e lutar
por Reforma Agrária. De igual maneira são criminalizados os defensores de
direitos humanos e os militantes dos movimentos sociais e populares. São muitos
os que estão ameaçados de morte e de prisão e os que foram presos nos últimos
meses. Torna-se urgente fazer natal nas fileiras do povo organizado que
reivindica o sagrado direito de manifestação.
Por fim, esta
sociedade que tem olhos abertos para as luzes do natal, para as vitrines, o
comércio e o consumo parece se tornado cega diante dos clamores das pessoas
injustiçadas e do meio ambiente. Nesta mensagem de natal, desejo, de coração,
que possamos retirar o olhar da vitrine, do consumo, dos presentes e
confraternizações particulares e construirmos olhares coletivos para o que de fato
é natal: vida com dignidade para todas as pessoas; justiça social; respeito e
reconhecimento de que em cada pessoa humana existe uma parte do divino. Não
bastam casas, ruas, praças e cidades iluminadas. É preciso seguir a estrela
guia apontada pelo povo que sofre toda forma de injustiça e esta estrela aponta
para a chegada de uma nova vida que supõe luta coletiva, ternura,
solidariedade, resistência e emancipação popular.
Belo
Horizonte, 25 de dezembro de 2012.
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