A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE
RUA E OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS EM SUAS LUTAS POR DIREITOS[1]
Maria do
Rosário de Oliveira Carneiro[2]
Pedro Paulo Barros Gonçalves[3]
1 A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
A
população em situação é considerada um grupo heterogêneo que apresenta como
característica comum a pobreza extrema, os vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e
utiliza os logradouros públicos, as áreas abandonadas e desocupadas como espaço
de moradia e de sustento. Encontra-se entre um dos grupos mais vulneráveis no
Brasil[4].
O fenômeno da população em
situação de rua possui múltiplos determinantes, e esses estão associados,
certamente, à trajetória de vida, entretanto, o seu determinante mais
significativo diz respeito à perpetuação do
histórico processo de produção e reprodução de desigualdades sociais[5].
Ademais, deve-se levar em conta que esse processo é muito mais perverso quando
se considera a especificidade que o mesmo assume nas periferias e
semiperiferias do capitalismo, como é o caso de muitos países da América Latina
e em especial, o brasileiro, aqui analisado. Em nosso contexto, observa-se a
ausência ou ineficácia de políticas públicas voltadas para lidar com as
situações de vulnerabilidade social dessa população. Restrições e obstáculos ao
acesso a direitos sociais compõem a condição de vulnerabilidade da população em
situação de rua, impostos pelas barreiras da seletividade e que se manifestam
também no acesso à justiça.
Como
consequência dessa vulnerabilidade decorrente da condição social observou-se
que esse grupo populacional, situado à margem da
sociedade, é vítima de descaso, discriminação, preconceito e desprezo que
resultam, em muitos casos, em ações violentas de agressão e muitos homicídios.
Ademais, o desconhecimento sobre a situação das pessoas em situação de rua
contribui para a formação de uma compreensão não só equivocada, mas sobretudo
preconceituosa e discriminatória, o que leva à criminalização dessas pessoas em
razão de sua condição social[6].
Pesquisa
realizada pelo Governo Federal em 71 municípios do país, publicada em 2008,
incluindo as capitais e cidades com mais de 300 mil habitantes evidenciou a
presença de 31.922 pessoas adultas em situação de rua. Entretanto, é importante
observar que essa pesquisa não contabilizou a população em situação de rua das
metrópoles de São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, por exemplo, o que
subestima o número desse público no Brasil, já que as cidades citadas
anteriormente pesam sobremaneira na incidência do fenômeno em tela. Feita essa
ressalva, os dados levantados pela pesquisa apontam que 82% da população é
predominantemente masculina, 53% das pessoas entrevistadas possuem entre 25 e
44 anos, apresentam um nível de renda baixo e 74% sabem ler e escrever..
O CNDDH desde sua inauguração, em abril de 2011, recebe e acompanha
casos de violência contra a População em Situação de Rua em todo o país,
tendo registrado número expressivo de violações de todo tipo, sobretudo
de homicídios.
De sua fundação, em abril de 2011 até 11 de setembro de 2013, o CNDDH
registrou 1.291 denúncias de violações, realizou 311 atendimentos diretos
(pessoas em situação de rua e catadores de materiais recicláveis que foram ao
CNDDH) e 38 atendimentos coletivos (grupos de pessoas em situação de rua,
associações e cooperativas).
Das denúncias, 634 são homicídios de pessoas em situação de rua, sendo
que 140 homicídios ocorreram no Estado de Minas Gerais. Entretanto, é importante
observar que o alto número de denúncias de homicídios no estado de Minas Gerais
se dá também, entre outras razões, devido a uma maior facilidade no acesso a
essas informações, já que o CNDDH situa-se nesse estado e em razão da
interlocução do Centro com diferentes instituições do poder estatal e da
sociedade civil organizada.
Dentro das categorias de violações com as quais trabalha o CNDDH, que
estão em consonância com a tipologia de violações da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República, em primeiro lugar está a violência física,
com um alto número de homicídios, e em segundo lugar, a violência institucional.
Essa última caracteriza-se, grosso modo, por violência praticada por
instituições que agem de modo a não cumprir as atribuições de sua razão de ser,
e com excesso. Nessa categoria são incluídas a violência praticada por
instituições de segurança (autoridade policial, guardas municipais, guarda
privada), o abuso de autoridade, a omissão, a recusa de atendimento, a ausência
de acesso a serviços, e outros tipos.
Os dados e o trabalho realizado
pela equipe do CNDDH constatam que os serviços de prevenção e enfrentamento à
violência contra a população em situação de rua ainda são insuficientes e/ou
ineficazes. É incontroverso e já consolidado que a ausência ou ineficiência de
políticas públicas que garantam os direitos sociais fundamentais contribui diretamente
para o aumento da violência que atinge esse público.
Em face
desse contexto de inúmeras violações e tendo em vista a perspectiva de garantia
de direitos, verificamos que há a ausência de políticas, como as de moradia,
saúde, trabalho, educação, entre outras, que promovam a real possibilidade de
processos de saídas das ruas, mesmo depois da criação de uma
política específica para esse grupo populacional, a Política Nacional,
instituída pelo decreto federal 7.053/09, que vem reiterar o já assegurado na
Constituição brasileira.
2 OS
CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS
Os catadores de materiais recicláveis,
enquanto profissionais que catam, selecionam e vendem materiais recicláveis e
reaproveitáveis, têm forte relação com a rua pelas características de seu
trabalho. Muitos deles viveram ou vivem em situação de rua, outros utilizam a
rua como espaço de catação.
Atualmente, mesmo com o
reconhecimento nacional de um protagonismo histórico na coleta seletiva e na
reciclagem, esses trabalhadores enfrentam o desafio de lutar contra os projetos
excludentes, originados pelo próprio poder público, sobretudo com as Parcerias
Público Privadas (PPPs) e a ameaça de
incineração de resíduos, podendo extinguir a matéria prima básica do seu
trabalho, além de causar graves danos ao meio ambiente e a saúde pública.
Com o trabalho precário e sem a devida
valorização, além da exposição constante a riscos e violências, os catadores de
materiais recicláveis têm lutado por conquistar respeito e reconhecimento em
todo o país.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos,
Lei 12.305 de 2010, é um marco regulatório abrangente e um dos seus principais
objetivos é a uniformização dos princípios e linhas gerais da gestão dos
resíduos sólidos em todo o território nacional. Tal política é extremamente
importante, pois pode estimular o debate para a implantação da mesma nos
estados e municípios, já que, quando se trata desses entes federados, há vários
equívocos no tratamento da questão.
O
art. 9o da Lei 12.305/10 de certa forma é uma garantia para
as Organizações de Catadores, pois estabelece uma ordem (hierarquia) de
prioridade para os gestores públicos: “a gestão e gerenciamento de resíduos
sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração,
redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição
final ambientalmente adequada dos rejeitos”. Sendo assim, não se pode realizar
o destino final dos resíduos sem realizar as etapas anteriores, como a
reutilização e a reciclagem.
Contudo, o mesmo artigo que traz uma
possível garantia, traz uma grande ameaça em seu parágrafo primeiro ao afirmar
que no que diz respeito aos resíduos, “poderão ser utilizadas tecnologias que
visam à recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos”, desde que tenha sido comprovada sua
viabilidade técnica e ambiental e com a implantação de programa de
monitoramento de emissão de gases tóxicos aprovado pelo órgão ambiental. Não
se fala, por exemplo, da questão da necessidade e viabilidade da inclusão social
que, para dizer o mínimo, é tão importante quanto.
Dentre
as tecnologias que visam à recuperação energética está o “fantasma” da
incineração que além de representar uma ameaça ao meio ambiente e a saúde
pública, representa uma ameaça aos catadores e suas organizações, por passar
pela queima da matéria prima de seu trabalho.
Alertou Dra. Margaret Matos
de Carvalho, do Ministério Público do Trabalho da 9ª Região, em artigo por ela
escrito, que não é possível ser adotada, no Brasil, qualquer tecnologia de
recuperação energética que seja emissora de dioxinas e furanos, como a
tecnologia da incineração, por força da subscrição, pelo Brasil, da Convenção
de Estocolmo. Além disso, as informações são de que as cinzas da incineração
podem representar 30% do processo e precisará de aterro especial, pelo nível de
contaminação.
Um dos grandes avanços da
Política Nacional de Resíduos Sólidos é que se trata de uma política pública de
caráter afirmativo, destinada a enfrentar a discriminação que sofre o grupo
social de catadores e catadoras de material reciclável vindo ao encontro de um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a erradicação da pobreza
e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. (Art.
3º, III da CF/88).
A eliminação e a recuperação
dos lixões (com prazo para 2014) prevista na Política Nacional devem ocorrer
concomitantemente com a inclusão social e a emancipação econômica dos
catadores, através da integração deles na gestão dos resíduos sólidos, de forma
compartilhada com os gestores públicos.
Também é previsto na Política
Nacional de Resíduos Sólidos a contratação da prestação de serviços dos
catadores e suas organizações para a continuidade do trabalho que já realizam,
asseguradas todas as garantias.
A melhor proposta apontada para
o Brasil para a gestão dos resíduos sólidos, com a inclusão dos trabalhos dos
catadores, é a reciclagem e a compostagem, o que possivelmente corresponde a um
valor menor que a incineração.
A compostagem como adubo
orgânico pode também contribuir com a solução de outro grande problema no
Brasil que é a utilização de alto índice de agrotóxicos na produção de
alimentos.
Daí a importância de ampliar
as lutas e juntar as bandeiras. O tema do meio ambiente diz respeito a toda
coletividade, pois o direito a um meio ambiente equilibrado é direito de todos.
Os direitos fundamentais dos
catadores de material reciclável tem que
ser respeitados e efetivados, suas organizações precisam ser
fortalecidas e os gestores públicos, no Brasil inteiro, não podem se esquecer
que, além da obrigação constitucional e legal de garantir tais direitos,
possuem uma imensa dívida com estas pessoas trabalhadoras pela grande
contribuição no cuidado com o meio ambiente e pela inclusão de tantas pessoas
no acesso ao trabalho por meio de suas organizações. O desrespeito a esta
história configura uma imensa violação.
A agenda da garantia pelos
Direitos Humanos no Brasil e em todo o mundo foram conquistas históricas que exigem
a continuidade da luta para que esses sejam efetivamente respeitados. Ademais,
deve-se seguir a luta para que outros direitos, como os direitos sociais e o
direito à cidade, por exemplo, sejam assegurados, bem como a luta pela
construção de uma ordem econômica com outras características. Uma economia que
abrigue a ética e a justiça social, o que muito caracteriza o trabalho dos
catadores e catadoras de materiais recicláveis.
Por fim, vale dizer que
apesar de cada um dos públicos aqui tratados (a população em situação de rua e
os catadores de materiais recicláveis) possuírem suas especificidades, eles se
encontram em suas lutas pela efetivação de direitos em um lugar comum, a rua. A
rua é o lugar onde vivem e/ou trabalham, e faz com que sonhem com um futuro
melhor e com mais justiça social. E é por essa razão que a luta deles também é,
ou deve ser, de todos nós.
[1] Texto elaborado para
contribuir com a discussão no Fórum Mundial de Direitos Humanos em Minas
Gerais, realizado nos dias 19 e 20 de setembro de 2013.
[2] Advogada do Centro
Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos Catadores
de Materiais Recicláveis (CNDDH).
[3]
Técnico
Cientista Social do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População
em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH).
[4] Conceito embasado no
Decreto Presidência n° 7.053 de 2009 que estabeleceu a Política Nacional para a
População em Situação de Rua.
[5] O fenômeno população
em situação de rua e suas origens e perpetuação é descrito por Maria Lucia
Lopes da Silva em Trabalho e População em
Situação de Rua no Brasil – São Paulo: Cortez, 2009.
[6] SILVA, Maria Lucia Lopes, 2009.
Oi Rosário, bom dia! (aliás, esse sol de domingo está ótimo, não é mesmo? Hehe)
ResponderExcluirEspero que este seja o nosso primeiro trabalho de muitos!
Abraço, Pedro.
É Pedro! O sol me traz boas recordações e saudades do nordeste, sobretudo quando ele provoca as chuvas de verão. Vamos sim, escrever muito ainda.... Nossa equipe do CNDDH tem muita experiência boa para compartilhar.
ExcluirGrande abraço,
Rosário.
Olá Rosário, belas lembranças essas suas. Muito bonito o que disse, me fez lembrar de minha terra natal, também no interior... Êta nós e os nossos sertões! Hehe. E vamos trabalhar muito sim! Forte abraço e até mais!
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